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quinta-feira, 15 de março de 2012

GRANDIOSA É A MINHA INDIGNAÇÃO...


            Imagino Deus, em toda sua grandiosidade e poder. Como Ser Onipotente, Onisciente e Onipresente, suas qualidades, no mínimo, lhe permitem alcançar as intenções mais ocultas da mente humana. Criador do universo e, portanto, deste mar de falsidades, este Deus não precisaria de uma análise de terapia ou de discurso para interpretar os não-ditos das verborragias de suas criaturas. Poderoso como o é, conhece as intenções do indivíduo antes mesmo da criação do mundo. Um ato, por menor que seja, é carregado de intenções, mesmo quando sejam motivados inconscientemente conforme atestaram Sigmundo Freud, C. J.  Jung, Alfred Adler,  Wilfred Bion, Jacques Lacan, entre outros psicanalistas. Antes de eles desenvolverem o conceito de inconsciente – coletivo ou individual – e até antes da fundação do mundo, Deus já sabia. 

             Acreditando que Deus seja Onisciente, inegavelmente seu gosto musical é profundo. Sabe de cor as obras completas de Bach, Beethoven, Ravel, Dvořák, Rachmaninoff, Prokofiev, Stravinski, Strauss, Händel, Wagner, Mozart, entre muitos outros grandes compositores. Sua Onipresença certamente lhe permitiu assistir as interpreções de, por exemplo, Luisa Todi, portuguesa que no século XVIII arrebatara os ouvidos e corações de franceses e alemães, ou, ainda no mesmo século, a apresentação da italiana Margherita Durastanti, intérprete mezzo-soprano das famosas peças de Handel, ou no XIX, a grande soprano polonesa Bogna Sokorska, cantando ária de Carnaval de Veneza, de Benedict ou no século XX a inesquecível voz de Maria Callas, interpretando Norma de Vincenzo Bellini. 

            Pois bem. Deus, em toda sua grandeza e poder, acostumado a manjares musicais tão finos que jamais ouvidos humanos alcançariam em sua totalidade, foi louvado em junho de 2011 na Câmara dos Deputados pela Deputada Federal Lauriete do PSC. Tentem imaginar a honra que Deus, acostumado com vozes tão lindas ou melhores que Todi, Callas, Durastanti ou Sokorska, deva ter sentido com a homenagem feita por nada menos que Lauriete. Para quem é louvado em lugar tão pomposo, pouco importa se o objetivo final da Casa Legislativa seja outro. Certamente, Deus nem sequer tenha se preocupado se aquele espaço representa milhões de pessoas que tenham outras religiões ou não professam fé no além. Azar! a fiel era dEle e o louvor também. Até porque o título da música é de um finess sem igual: Grandioso és Tu!

O Deus louvado, a despeito de toda teoria psicanalítica, necessita ter seu ego massageado pela linda voz da cantora Lauriete. Não interessa a Ele se, para tal homenagem, investimento público foi gasto, afinal de contas, entre tantos fiéis usurpando dinheiro público no Planalto Central, Deus também necessita fazer uma boquinha. Como a moeda celestial é eterna e diferenciada para não sofrer as crises cambiais do sistema capitalista, o Todo Poderoso não admite as ofertas em reais, mas em glórias, cabendo aos pastores, padres e cantores fazerem a conversão monetária. Embora Onipotente, Onipresente e Onisciente – o que não é pouca coisa – Deus precisa ser eternamente glorificado. A definição de seu caráter não se deve pelo louvor em si, mas pelo advérbio de tempo – eternamente. Um Deus, cuja necessidade de satisfazer-se não tem fim, agradou-se de não ser mais louvado em templos e púlpitos, mas na tribuna parlamentar. Até Deus rendeu-se aos encantos arquiteturais do Planalto Central.

            Para quem não conhece, a capixaba parlamentar tem 25 anos de carreira gospel, com 21 CD gravados, dos quais já recebeu 7 discos de ouro e 5 de platina. Discípula de Silas Malafaia, a cantora já afirmou publicamente inspirar-se em suas pregações para compor canções como: Deixe a Glória Descer, Quando a Glória Desce, Quando Deus se levanta, Manda Fogo Jeová, Deus não Brinca, Ele é muito mais, Santo Diferente, Operando Milagres e outras pérolas. Ninguém melhor que ela para representar a diversidade, a riqueza e a grandiosidade da cultura brasileira. Por isso, Deus continuará sendo brasileiro e, reafirmada sua dupla cidadania, acabará com a fome, a violência, o desemprego e a imoralidade em nosso país, de modo que nos tornaremos a nova potência mundial e, assim, poderemos invadir alguns Iraques, criar alguns Guantânamos e dominar o mundo. Tudo graças aos fiéis evangélicos, os quais, entediados em falar de amor para seus fiéis em cima dos púlpitos, resolveram tomar de assalto a tribuna do Congresso Nacional. Absurda tal imaginação? Não para muitos fiéis que viram nesse ato da deputada a mão de Jeová, mostrando para outros deuses e para o diabo – com quem disputa o reino da Terra a milênios – que Ele, Todo-Poderoso, tem seus vasos de honra. O curioso é que nada foi feito contra essa violação à Constituição Brasileira. Partidos Políticos, Ministério Público, Entidades de Classe provavelmente entenderam esse ato como direito à livre expressão e direito à manifestação da fé.

            Para terminar, convido os leitores a uma análise rápida da música cantada: Senhor, Meu Deus, quando eu maravilhado/ Fico a pensar nas Obras de Tuas Mãos/O Céu Azul de estrelas pontilhado a nos mostrar a Sua Criação. O advérbio “quando” restringe e determina o tempo do “eu” pensar na criação, indicando não ser um ato contínuo, mas ocasional. Somente quando o eu-lírico está em estado de graça – na tribuna parlamentar por exemplo – é que pensa em Deus e em sua obra. Curiosamente, o verbo utilizado é pensar e não contemplar. Parece uma diferença sutil, mas é fundante, uma vez que Lauriete e seus correligionários de fé votaram a favor do Código Florestal. Ora, sabendo que a natureza já está historicamente destruída com as bençãos da Igreja, não há mesmo o que contemplar, apenas pensar no que já pouca coisa resta. O texto enuncia uma das poucas obras que ainda não sofreu a ação humana: as estrelas pontilhadas e o céu azul que seja possível ver sem poluição. Amantes da metonímia, isto é, da parte pelo todo, basta que céu azul e estrelas pontilhadas representem a já quase inexistente criação.

 Quando eu medito em Teu Amor tão Grande/Teu Filho dando ao mundo pra salvar/Na cruz vertendo Seu Precioso Sangue minh'alma pôde, assim, purificar. A segunda parte mostra o prazer mórbido na tragédia de Cristo assassinado por soldados romanos com a morte de cruz. Tema preferido dos evangélicos – depois do Antigo Testamento recheado de mensagens bélicas – funda uma prática literalizante do sacrifício do corpo (do outro, obviamente) como manifestação de amor. Talvez isso justifique a prática aos discursos de ódio que vitimizam LGBT, mulheres, negros, índios, ateus ou pessoas de outras religiões. Afinal, se Deus matou o próprio filho como forma de amor, condenar ao inferno, chamar de pecadores, de doentes, de filhos de demônio e outros qualitativos torna-se café pequeno. O amor, substantivo abstrato, materializa-se pelo paralelismo que a música estabelece com outro substantivo – o sangue. Entre o amor e a purificação é preciso haver sangue e só haverá sangue em contextos de guerra. Por isso, apoiar direta ou indiretamente políticas como o Código Florestal, a Usina Hidrelétrica de Belo Monte ou a desapropriação do Pinheirinho faz parte da fé desses cristãos.

E quando enfim Jesus vier em Glória/E ao Lar Celeste então me transportar/O adorarei, prostrado e para sempre/"Grandioso é Tu, meu Deus!", hei de cantar. A terceira e última parte denota o projeto de fé cristã desses evangélicos – e por que não, católicos? Embora peçam rios de dinheiros a seus fiéis, comprem aviões, mansões e toda quinquilharia moderna do capitalismo, o projeto de futuro é outro lugar – o lar celeste. A narrativa desse texto, literaliza a volta do Cristo em toda sua glória – porque voltar pobre novamente é exigir demais dos fiéis – para tirá-los deste Planeta destruído por eles mesmos. O texto poético explicita a cumplicidade entre Deus e seus fiéis. Tendo a benção divina para desenvolverem seus projetos passageiros e materiais em possuir os bens da Terra, mesmo que pra isso precisem se fazer representar no Parlamento, esses fiéis garantem, como forma de pagamento, saciar por toda eternidade a carência afetiva infinita de Deus em ser louvado e adorado. Antigamente, isso era conhecido como pacto de venda da alma e era negociado com o diabo. Provavelmente, Deus deva ter percebido a rentabilidade do negócio e passou a fazer concorrência. Tal lógica presente na última parte justifica o coro repetido várias vezes em que a grandiosidade de Deus pode ser traduzida como o ato perverso da prática de exclusão, violação de direitos, violência e discurso de ódio sintetizado no título da música Grandioso és tu! De duas uma: ou esse Deus, acostumado a músicas de altíssima qualidade, caducou de vez para se contentar com a voz esganiçada da deputada ou ela tem cantado para um outro deus que se encaixa muito bem nesse perfil de carência e violência, conhecido historicamente como o próprio diabo.

4 comentários:

  1. Olé !


    Haha... Maravilhoso texto. Aliás, sempre !

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  2. Humorado, erudito, exagerado. Tem de escrever para o povão, pra qualquer um entender e não desistir da leitura após a primeira frase. quem não se comunica bem, se estrumbica.

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  3. Adorei, adorei... Vou repassar loucamente por aí...bjs

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  4. PSC não é aquele partido idiota que faz propagandas em nome dos valores e da família?

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