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domingo, 24 de junho de 2012

ENTRE A OFENSA E O PRAZER SEXUAL – DO PUNK HARDCORE AÇÃO LIBERTÁRIA AO FUNK CARIOCA DE VALESCA POPOZUDA



É som de preto/De favelado/Demoro/Mas quando toca ninguém fica parado/O nosso som não tem idade, não tem raça/E não tem cor/Mas a sociedade pra gente não dá valor/Só querem nos criticar pensam que somos animais/Se existia o lado ruim hoje não existe mais/Porque o funkeiro de hoje em dia caiu na real/Essa história de porrada isso é coisa banal/Agora pare e pense, se liga na responsa/Se ontem foi a tempestade hoje vira abonança
Som de Preto – Amilka e Chocolate



Qual relação que pode haver entre o Punk Hardcore e o Funk carioca? Aparentemente nenhum, mas uma análise histórica desses dois movimentos musicais poderia nos mostrar que há mais em comum do que se imaginam. Sem fazer uma abordagem histórica, o que me leva a tratar desses dois estilos musicais é algo muito específico a partir da luta pelos direitos da população LGBT.
         
   Recentemente, cantores desses dois movimentos resolveram compor letras, tratando de questões referentes à luta LGBT. No Rio de Janeiro, a funkeira Valesca Popozuda com seu hit Sou Gay de 2012 e, no Rio Grande do Norte, a banda Ação Libertária com a letra Heterofobia de 2011. A opinião corrente sobre o funk, como também ao punk hardcore, é permeada de preconceitos e lugares comuns que reforçam uma visão elitizada e costuma marginalizar ambos os estilos de música. Contudo, nenhum outro estilo é tão discriminado como o funk carioca. As críticas a esse estilo musical é mais da ordem moral do que estética; entre as mais recorrentes estão a de que as letras são obcenas, seus bailes são grandes orgias e o funk, por ser dos morros, é associado ao tráfico.
Curiosamente, o termo hardcore, na década de 1980 nos Estados Unidos, estava associado a criminosos, mas, embora alvo de críticas e discriminações, o estilo punk hardcore já é associado como músicas de protestos que criticam a ordem social opressora e convidam seus ouvintes a uma postura crítica à sociedade capitalista. As letras costumam ser radicais e atacam setores conservadores e violentos da sociedade. Parece ter sido essa a razão da composição da música Heterofobia da banda potiguar Ação Libertária. Porém, uma leitura atenta nos faria questionar a volubilidade ideológica dessa banda na era do Capitalismo.
A letra inicia dizendo sobre o respeito mútuo quanto às escolhas individuais. Baseada em lugar comum, parece propor uma confluência a grupos distintos, mas nos dois versos seguintes a crítica radical dessa música marca o sentido paradoxal com os dois primeiros versos: O meu lance é comer buceta/E não te interessa onde eu enfio meu pau. Somente aqui sabemos quem é o alvo da crítica que a música busca atingir: gays. Na sequência, reafirma a crítica: Mas se você gosta de outro macho/ O problema é somente seu,/Não me envolva na sua causa,/Pois não é minha, se é que não percebeu. Reproduzindo uma das máximas da cultura capitalista, a banda reafirma a tese de cada um com sua causa, cada um com seu problema. Jorge Luis Borges, ao tratar do Nazismo e do Holocausto contra o povo judeu observa que, ao considerar o judeu como um problema – como fizeram diversos teóricos no século XIX e XX, entre eles Bruno Bauer, Karl Marx e Jean Paul Sartre – a palavra “problema” – em alemão frage – simbolicamente chama os campos de concentração. Estabelecendo um paralelo, ao dizer que “gostar de outro macho” é um problema, simbolicamente a banda invoca as práticas de violência e tortura contra homossexuais no mundo todo ainda feito atualmente. A sequencia da música busca especificar o alvo: Heterofóbicos de merda, vai tomar no olho do seu cu!/Heterofóbico de merda, eu já disse, vai tomar no olho do seu cu, bem no centro do seu cu e se satisfazer/ Eu não partilho dessa sua ideia, então me respeite para eu respeitar você. Fica evidente o paradoxo da letra em que a ofensa é acompanhada pelo pedido de respeito. O insulto não apenas ao suposto heterofóbico, mas a reprodução machista que destoa com o movimento punk hardcore reconhecido por travar combates ao machismo. Termos como gosto de comer buceta, vai tomar no olho do seu cu, evidenciam a reprodução machista da mulher como objeto sexual e de dominação. Na segunda parte da música, embora insistam na ideia do respeito e de crítica ao preconceito, reivindicam o direito de tratar a homossexualidade masculina como algo errado: O preconceito tem várias faces/Se transformando em lei mortal./O fato de não concordar com algo e achar errado/Não me crucifica e nem me faz rival. Ao me deparar com essa letra no facebook (http://www.facebook.com/events/156537991139821/permalink/187216021405351/?comment_id=188051397988480), tentei dissuadi-los do equívoco da letra e da conformação com discursos reacionários que forjaram o termo heterofóbico – para quem não sabe, o termo foi criado por grupos de direita que reivindicam o privilégio de condenar LGBT e impedir que o direito a cidadania plena sejam garantida. Conforme o leitor pode ver no debate que travei com a banda e seus defensores, o único argumento que apresentaram para justificar o uso do termo foi a de que em alguns momentos eles eram criticados por homossexuais pelo fato de não o serem. Obviamente, essa música não pode ser entendida como expressão do movimento punk hardcore, até porque algumas bandas como Catarro repudiaram a letra e se negaram a fazer show junto com a Ação Libertária. Mas é lamentável que esses meninos desconheçam a história do movimento que reivindicam fazer parte e acabem por manchar o movimento, aliando-se a pensamentos tão retrógrados e violentos.
Na contramão desse discurso conservador, a cantora Valesca Popozuda lançou seu hits Sou Gay. A música inicia com a leitura da PLC 122 que termina o trecho com a frase: praticar e induzir ou incitar a discriminação ou o preconceito resulta, meu bem em crime. A letra mostra no ritmo do pancadão a sensibilidade com a luta do movimento LGBT. Mais que isso, mesclando funk com a pauta LGBT, Valesca opera a nota do direito ao corpo, o direito de a pessoa beijar, ficar, transar com quem quiser: Vem meu bem não tem ninguém/Apaga a luz relaxa e vem/Suei, beijei, gostei, gozei/Sou Bi, sou free, Sou tri sou gay. Erotizando a pauta LGBT, a cantora não somente trata dos direitos afetivos, mais que isso, marca o direito ao corpo e o direito ao erótico. É o que podemos ver nas estrofes seguintes: Senti um calor e na pista desci ao som do dJ me liberei/Te olhei e percebi, que aqui posso ser Free/Dança comigo, sente meu som/Dança comigo, e sente o que é bom/No bate cabelo na pista senti/Seus lábios aos meus senti que sou free/Beijei uma mulher/Um gosto bom eu senti/Eu posso ser livre ou posso ser Bi.
            Em entrevista ao site Ego (http://ego.globo.com/famosos/noticia/2012/06/valesca-popozuda-posa-nua-em-clima-de-protesto-e-diz-nao-ao-preconceito.html), Valesca conta sua trajetória dentro do funk e diz ao que veio. Não apenas pelo fato de compor uma música gayfriendly – diria até ser este o menor dos motivos – a razão que me faz admirar essa impostura de Valesca é sua capacidade de leitura crítica como mulher e como heterossexual: como mulher, Valesca reafirma seu direito ao corpo, o direito de fazer o sexo apenas pelo prazer sem ter de romantizá-lo, embora se considera uma mulher romântica. Se o movimento feminista deu uma grande contribuição ao reivindicar os direitos da mulher e combater o machismo que viola esses direitos, eu diria que Valesca dá um passo além ao afirmar o direito sexual da mulher – o direito de ser sujeito de seu corpo, de seu prazer, de sua sexualidade e de seu orgasmo. Como heterossexual, Valesca movimenta-se para além da sua realidade, não somente ao reafirmar os direitos sexuais de gays, bissexuais e lésbicas, mas ao fazê-lo, utiliza-se da estética erótica do funk para, com profunda sensibilidade reafirmar, na perspectiva homossexual, o direito ao erotismo gay, sem necessariamente higienizá-lo e amarrá-lo no modelo do casamento.
            É curioso observar que o grupo, cujo nome – Ação Libertária – sugere uma consciência crítica da realidade de opressão que mulheres e LGBT ainda vivem, mostra o inverso: a manifestação retrógrada que, além de reproduzir discursos machistas que tratam a mulher como objeto sexual e de dominação, faz coro com a direita moralista e reacionária ao legitimar o conceito de heterofobia. Na contramão desse discurso, vemos uma cantora vista como imoral e discriminada por produzir músicas do morro do Rio de Janeiro e, portanto, estigmatizada não apenas pelas “obscenidades” em suas letras, mas principalmente por compor e cantar “músicas de preto”.
A própria noção de obscenidade pode ser questionada no comparativo entre as letras de Valesca Popozuda e a letra de Ação Libertária. Em um dos versos da música Mama desta cantora, a letra diz: Quando eu te vi de patrão, de cordão, de R1 e camisa azul/Logo encharcou minha xota e ali percebi que piscou o meu cu. Tanto em Mama quanto em Heterofobia a palavra cu é utilizada. Mas sem dúvida, encontraremos pessoas ditas intelectuais defenderem a banda, mas recriminar a cantora, e por quê? A razão se deve à erotização e à condição de o eu-lírico feminino colocar-se como sujeito do sexo pelo sexo sem romantizá-lo. Observando ambas, vemos que a letra hardcore utiliza-se da palavra “cu” com sentido de ofensa e degradação, enquanto que no funk não há ofensa, mas prazer, erotismo, desejo. Se aquele degrada um determinado grupo ao ofendê-lo, esta subverte a lógica machista e a moral cristã operando o sexo como direito. Talvez incomode ler um texto que critique uma música que se propõe crítica e elogie o funk comumente repugnado pelos ditos “intelectuais”. A razão é bem simples: naturalizamos absurdamente a violência e a violação dos direitos e tratamos como monstruosidade aquilo que há de mais humano em nós: o prazer sexual.

8 comentários:

  1. Concordo com o texto do Dário Neto , o grupo punk " Ação Libertária" saiu com o tiro pela culatra literalmente, achando que estavam nos ajudando, acabaram reforçando paradigmas antigos e retrógrados vinculados ao sexo anal, reforçando com a letra que o sexo vaginal é algo superior , pois no fim do ato, pode se gerar procriação e o anal apenas prazer carnal . Em certo momento quando mandam os heterofobicos tomar no cu, usam se da mesma arma contra a homofobia, para ofender os homofóbicos, como se ter prazer anal fosse algo ofensivo e pejorativo. Não entendo uma letra que pede respeito a quem tem direito de compartilhar o seu cu ,com quem quiser e em outra estancia é usada para ofender os que supostamente o condenam, complicado isso tudo. A Valesca,fez exatamente o contrário com a letra "vem meu bem/não tem ninguém/apaga a luz relaxa e vem/suei, beijei, gostei, gozei/sou bi, sou free, sou tri, sou gay", foi totalmente inclusiva na temática GLBTT, a grande diferenças nas duas letras das musicas é o seguinte , o funk incluí e o punk excluí, simples assim.

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  2. Muito lúcido o texto. Especialmente por questionar a ideia de que um gênero musical carrega em si, necessariamente, uma concepção. Ainda mais um gênero tão diverso quanto o funk. Valeska foi extremamente feliz nesta letra - o que não significa que todas suas letras tenham a mesma pretensão de expressar uma concepção libertária, muito menos que todas as letras do funk tenham esta premissa. Quanto ao punk, trata-se de um movimento - o que deveria ser mais do que um gênero musical - mas este movimento também carrega suas contradições. Não acho que os integrantes do Ação Libertária tenham querido de alguma maneira "ajudar" ou que o tiro deles tenha saído pela culatra... considere a possibilidade deles terem concepções conservadoras mesmo e terem expressado isso em sua música... o que não significa que isso representa o movimento punk (como o Dário fez questão de demarcar no texto, de forma muito acertada, na minha opinião). Acho que textos assim deveriam fazer mais parte de nossa discussão cotidiana... porque a chamada cultura enlatada tb expressa muito do que pensa o nosso povo, então não pode ser ignorada ou tratada como algo de segunda categoria.

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    1. De fato, Luana, o funk é bem mais complexo do que podemos imaginar. É funk, assim como o rap, é antes de tudo expressão musical que ocupa um vazio deixado pela elitização da música e seu uso é transideológico, há muitas músicas que manifestam a reificação da mulher, mas ao mesmo tempo diversas mulheres têm respondido a essa reificação fazendo o jogo errado. O que mais me incomoda com a crítica do funk é seu juízo moral e de classe que pouco contribui para uma compreensão mais apurada de seus efeitos na cultura popular.

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  3. Bom,musicalmente e esteticamente esses 2 "movimentos"não significam absolutamente nada e isso não é preconceito:o que há nesses gêneros de melodia,harmonia(estou falando de acordes e não de "paz")ou ritmo que não seja de um primarismo pueril?Costumo chamar de "fanque" o som que veio do Rio pra não confundir com o Funk,gênero que surgiu nos EUA na década de 70.E esse "panque"de hoje em dia não guarda qualquer semelhança com o movimento musical engendrado pela juventude operária inglesa.O problema é que esses nossos jovens "panques" e "fanqueiros"não tem qualquer noção do caráter libertário do PUNK e do FUNK!É gente que costuma confundir a suástica co o "A" de anarquia!A questão toda resume-se numa palavra:EDUCAÇÃO.

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  4. O texto traz uma discussão importante, mas colocar a Valesca como à frente da luta feminista é um exagero. A questão do controle do corpo feminino sempre foi uma das reivindicações centrais do movimento feminista, Valesca não inventou a roda. De todo modo, concordo que Valesca tem dado passos muito acertados e espero que o funk siga por esse caminho.

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    1. Oi Renata, o movimento feminista há muito tem lutado pelo direito ao corpo da mulher - em momento algum afirmaria o contrário. O que Valesca traz a mais em suas músicas e, também, ela não é a primeira - vemos isso, por exemplo nas músicas da Rita Lee - é o direito a erotização de modo que a mulher torne-se sujeito de seu prazer sexual.

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  5. Galera, encontrei o link com o álbum que tem a música 'Heterofobia' da banda Ação Libertária e não vi homofobia na letra, mas sim uma letra ácida, direta e que está a frente desse tempo por falar de uma possível nova vertente de preconceito. Na introdução tem até uma mensagem para os que não entenderam. A mais de 15 anos sou lésbica e posso garantir que o que eles descrevem existe e é verdade, porque no nosso meio existem sim pessoas de pesamentos extremos e que não toleram héteros, assim como os homofóbicos não toleram os homossexuais. Baixem aí e digam o que acham ou mantenham a postura radical de vocês de enxergarem ameaça ou homofobia em tudo, é uma escolha.

    Ação Libertária - Cavalo de Tróia: http://www.mediafire.com/?c1p6cmgdivgn9u1

    Fernanda Rebouças

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    1. Fernanda,

      Se frases desse tipo: "Heterofóbicos de merda, vai tomar no olho do seu cu!/Heterofóbico de merda, eu já disse, vai tomar no olho do seu cu", ou: "O meu lance é comer buceta/E não te interessa onde eu enfio meu pau".
      não são nem homofóbicas, nem machistas, fico me perguntando o que seja esses conceitos para vc... Eu li e ouvi a música e já disse o que acho dessa letra. Cabe a vc agora dizer o porquê elas não são nem machistas, nem homofóbicas e porque somos radicais e vemos homofobia em tudo. Afinal, vc, como lésbica, deve experimentar cotidianamente os discursos violentos homofóbicos e machistas...

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