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quarta-feira, 21 de novembro de 2012

LUCAS FORTUNA: PRESENTE!



Texto lido na Plenária Final do X ENUDS - Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual, durante ato de homenagem ao co-fundador do ENUDS Lucas Fortuna.



Encontro Nacional Universitário de ou sobre Diversidade Sexual? Sim, foi esta uma das principais polêmicas entre mim e Lucas Fortuna durante vários ENUDS. Mas não foi este o primeiro contato que tive com ele.  Entre diversos outros militantes LGBT do movimento estudantil, estava Lucas Fortuna compondo conosco os primeiros alicerces do ENUDS no ATO CONUNE em 2003. E voltamos a nos encontrar no 2º ENUDS em Recife, marcando sua participação efetiva no Encontro. Desde então, passou a defender Goiânia como sede. Foram duas tentativas (ENUDS Recife e ENUDS Niterói) que não logrou sucesso, mas nem por isso deixou de legitimar esse espaço e de insistir nesse posicionamento. Em 2006, a plenária final em Vitória/Espírito Santo aprovou Goiânia como sede do 5º Encontro. 2007 foi sua última participação no ENUDS.
Indo uma semana antes para auxiliar a Comissão Organizadora, fui hospedado em sua casa em Santo Antônio de Goiás. Lá, pude conhecer outro Lucas: não o das plenárias, debatedor, partidarista e defensor ferrenho de seus posicionamentos. Conheci o Lucas de D. Tânia e Seu Pardal – o Lucas família, com suas histórias, sua infância, seus momentos de conflitos e de alegria, contados com a mesma naturalidade do Lucas Militante.
                E ainda agora não consigo me dar conta de que não poderei rever nem Lucas-família, nem Lucas-militante, pois ambos nos foram roubados pela homofobia. Uma homofobia anônima, sem rosto e sem réu que deixou seu corpo, seminu, ensanguentado com marcas de espancamento na praia de Cabo de Santo Agostinho próxima a cidade de Recife em Pernambuco. Esta violência evidencia duas coisas: a violação recorrente da Declaração Universal dos Direitos Humanos em preservação à vida, fazendo com que seres inescrupulosos entendem-se no direito de tirar a vida de alguém que nos é tão caro e a omissão criminosa dos Poderes Legislativo e Executivo do Estado brasileiro, os quais se calam ano após ano diante das mortes de pessoas LGBT, preferindo encarar como dados estatísticos desumanizados. Não, a morte de Lucas não nos é apenas um número, não faz parte de uma estatística quimérica. Essa morte é uma dor violenta cravada no peito de seus familiares, amigos e de nós, enudian@s que aprendemos a conhecer e reconhecer em Lucas uma parte importante de nossa história.
                Poderia denunciar esse assassinato pelo viés político dos Direitos Humanos, evidenciando a falta de políticas que combatam substancialmente este e muitos outros assassinatos de Travestis, Transexuais, Lésbicas ou Gays, contra o qual tanto o Lucas militante lutou. Poderia problematizar pelo viés dos discursos performativos de líderes cristãos que pregam a intolerância em nome de um deus intolerante e cujas mãos e almas estão mergulhadas de sangue, pois o ódio discursivo mascarado de juízo religioso tem motivado tantos assassinos anônimos a deitarem por terra vidas carregadas de sonhos e de esperança,  povoada de história e de pessoas que lhes ensinaram de diversas formas o sentido do amor. Contudo, se o fizesse, apagaria o que mais me afeta nesse momento: a dor da perda traduzida em sentido de ausência.
                Sinto a ausência de alguém que me foi tão caro pelo modo tão particular com quem construímos este ENUDS. Durante o 2º ENUDS, fosse apresentando trabalho de seus estudos na área da Comunicação, ou polemizando nas mesas as concepções que lhe eram caras, ou fervendo pelos corredores da UFPE ou nas culturais onde éramos um grupo de não mais que cem pessoas, ou ainda na Plenária Final, inaugurando para nós um novo modo de se fazer destaque nas proposta: era a leitura terminar que ouvíamos divertidamente a voz de Lucas gritar: TAC e logo virando um coro divertido e ritualístico para aquela e outras plenárias que a sucederam. No 3º ENUDS, durante o processo de sua construção, ainda posso ler os inúmeros e-mails de Lucas questionador sobre o modo de organização da CO na Universidade Federal Fluminense em Niterói. No encontro, tencionarmos bilateralmente posições que nos eram caras e que fizeram de ambos duas posições diferentes do ENUDS. Durante o 4º, na Universidade Federal de Espírito Santo, em Vitória, embora os resquícios das tensões passadas permaneciam, conversamos por horas sobre a possibilidade do Colcha de Retalho sediar o 5º ENUDS na Universidade Federal de Goiânia. E lá, pela última vez que nos encontramos nesse espaço, na semana anterior do Encontro, Lucas prontificou-se em me buscar no Aeroporto de Goiânia e hospedar-me em sua casa por alguns dias.
                A política, embora racionalista, não se faz sem sentimentos e certamente, havia sentimentos ambíguos entre mim e Lucas. O militante que às vezes refutava e questionava meus posicionamentos sobre esse Encontro foi o ser humano que eu pude conhecer para além das plenárias. Foi com ele que conheci e aprendi a gostar de Edith Piaf. Tomando café em sua casa, pudemos discutir seus projetos de um futuro mestrado na área de comunicação. À noite, no bar, pude conhecer muito da vida íntima familiar e pessoal. Como o prenúncio de ausência, Lucas fez daqueles dias uma apresentação do militante que sempre se dispôs ao embate e debate comigo na construção do ENUDS.  E nenhuma lembrança poderá ser tão forte, tão viva e tão marcante do que aqueles dias. Após, não houve mais debate entre nós dois, nem sequer na última plenária que participamos juntos em Goiânia. Embora os ENUDS seguintes aconteceram sem a presença de Lucas Fortuna, ele nunca deixou de nos ser tão presente nesses Encontros. Se o Encontro Nacional Universitário até hoje não se definiu ser de, sobre ou para a Diversidade Sexual, devemos ao Lucas essa indefinição.
                Bem certo que por essas histórias e outras que se hão de contar, a vida de Lucas Fortuna não passou à toa e por isso a dor da perda é comungada nacionalmente. Por isso sofremos: sofremos o sentido da ausência tão presente aqui nesse encontro e nunca, talvez nunca, ele me foi tão presente como o é agora. É difícil explicar esse sofrimento estúpido mergulhado em lágrimas, sofrimento de pessoas que o conheceram, muitas anônimas de nós, mas que se comunicam sem gesto, sem palavras.  Mesmo assim, o sentido da ausência invade-nos e nos aproxima, mesmo que não percebamos, apenas sem saber compartilhamos essa dor e nos calamos sem qualquer orgulho.
                Esse sentido de ausência alegoriza o particular na morte de Lucas: como se entre as muitas mortes de LGBT esta fosse a pior. Sim, a pior para nós que perdemos e que teremos de aprender a conviver com essa perda. Mas as outras, desconhecidas, são números frios de estatísticas recolhidas em notícias de jornais. Não! Me nego a reduzir essas mortes a números. Não! Não são 260 por ano que morrem. Me nego a essa estatística fria e desumana que a tudo reduz em números. São milhares de milhares que morrem nessas mortes. Esse corpo espancado carrega vilas, cidades, estados e até país que morrem com ele. Morremos com ele. Essa alegoria do particular necessariamente nos coloca diante da particularidade da alegoria que nenhuma Matemática, em toda sua exatidão, poderá alcançar. Se nossa cultura tivesse humanidade suficiente para perceber que a cada morte cidades inteiras são destruídas, entenderíamos o sentido do humano e bastaria a ameaça de uma vida para romper a inércia política do Legislativo e Executivo. Mas estes, em suas estúpidas burocracias preferem os números como meio de gerenciar a miséria.
                Sou incapaz de entender qualquer cosmogonia que me dê algum sentido do futuro. Sou incapaz de entender o futuro, mas caso haja algum, fico então, para terminar, com a cosmogonia de Milton Nascimento: seja o que quiser, venha o que vier, qualquer dia amigo eu volto a te encontrar, qualquer dia amigo a gente vai se encontrar.

2 comentários:

  1. que saia da gaveta imediatamente, e com a pressão de nossa mobilização , que se aprove o plc 122 abrangente , junto com a criminalização severa da homofobia no novo codigo penal. a pesquisa do senado mostra que o povo ê favoravel. vamos grtar mais alto para que os insensiveis do Congresso e a surda Dilma obedecam nossa voz

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  2. Muito tocante; como só um texto produzido em meio a dor e ao inconformismo poderia sê-lo.

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