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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

UMA FLOR NASCEU NA RUA?

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Carlos Drummond de Andrade - A Flor e a Náusea



Vivemos tempos difíceis. Essa frase não é nova. Tornou-se lugar comum a ponto de esvaziar-se de sentido e tornar-se apenas uma sentença fática para quem não sabe mais o que dizer.  O verbo, cujo sentido é visceral para a existência, está conjugado na primeira pessoa do plural, identificando o sujeito coletivo “nós”. Contudo, o adjetivo “difícil”, ao tencionar com o sentido do verbo, aponta para um reconhecimento conformista: sabemos que vivemos, mas a ausência de palavras que possam apontar qualquer sentido que nos provoque esperança confirma esse conformismo inativo da frase.

Apesar disso, as pessoas não deixam de estar revoltadas. A exposição recorrente e compartilhada de absurdas violências nas redes sociais provoca cada vez mais tais revoltas. São revoltas aos freqüentes casos de corrupção que mancham nossa política brasileira, aos abusos de poder que privilegiaram um homem e destruíram a vida de mais de mil famílias no bairro do Pinheirinho. A sensação de impunidade de jovens burgueses, cuja excelente educação recebida pela família e pelas caríssimas escolas os leva constantemente a atacarem gays, lésbicas, travestis, prostitutas, moradores de rua.  São inúmeros motivos para nos revoltarmos. E graças a essa tecnologia, que democratizou a comunicação de massas, aprendemos a revoltarmo-nos virtualmente. No Facebook, por exemplo, basta uma notícia que provoque nossa indignação para compartilharmos, comentarmos e, contraditoriamente, curtirmos e, desse modo, termos a ilusão de termos nos manifestados.
Nossa indignação deixou de nos mover de nossas casas, de nos levar às ruas, de nos juntarmos, de refletirmos e debatermos sobre seus motivos. Fez-nos cada vez mais imobilizados a frente de um computador ou um notebook para vivermos a ficcionalidade moderna da revolta. Tanto porque essas ruas, ironicamente chamadas de espaço público, foram privatizadas para circular a renda diária do capitalismo. Terra desolada, de lugar comum, tornou-se terra de ninguém. As ruas foram privatizadas, não apenas pelas logísticas modernas que fazem circularem transportes com carne morta ou carne viva, fazendo circular o sangue da modernidade. A pior privatização deu-se com a cisão entre o tempo e espaço da humanidade. O espaço continua lá, cuidados ou não, emburacados ou asfaltados. Nós é que perdemos o tempo que possibilitaria a confraternização nos espaços públicos. Roubaram de nós essa possibilidade quando, ao nos tornarem escravos do relógio, perdemos o tempo da vida. Parafraseando Drummond, somos aqueles que voltam para nossas casas mais cedo, cada vez com menos liberdade, mas levamos nossos jornais, soletramos o mundo, sabendo que o perdemos.
Mas alguns jovens tomam as ruas. Mesmo que a polícia os reprima violentamente, mesmo sabendo que são poucos ou mesmo sabendo os limites de suas contestações. Vão para as avenidas denunciar as corrupções, denunciar o racismo, o machismo, a homofobia, denunciar a falta de políticas educacionais ou de saúde, ou ainda denunciar a violência contra os moradores do Pinheirinhos. Outros até dedicaram seu tempo para somar à resistência que antecederam o massacre do Pinheirinho. Essa presença de militantes – jovens ou não –, no momento da violência legalizada pela justiça estadual paulista, permitiu que as redes sociais mostrassem o que a grande mídia silenciou. Contudo, mesmo essa ousadia é marcada por limites. São pessoas que, por mais solidárias, sabem para onde voltar, onde dormir. Não perderam suas referências de mundo, nem suas histórias. São pessoas que talvez não poderão jamais compreender os danos morais profundos que essa investida estatal causou na alma daqueles moradores. O tempo moderno rapidamente engolirá essas ações e, quando muito, serão apenas recursos discursivos para outras lutas, outras manifestações. Apenas na alma de cada morador, que aos poucos se diluirão no correr do relógio, ficará a marca desse atentado à humanidade. Ainda Drummond, o nosso ódio é o melhor que há em nós, pois com ele nos salvamos da inépcia moderna e damos a poucos uma esperança mínima.
Mas talvez, quem sabe, poderíamos ver uma flor nascer na rua. Vitor Cunha, estudante de 21 anos, educado a compreender que os direitos humanos não se restringem a qualquer condição social, levou ao extremo, no momento em que interferiu na agressão a um morador de rua, por cinco covardes de classe média. Herói solitário: alguns poderão achar loucura ou exagero, outros poderão até considerar ousadia, mas dificilmente encontraríamos alguém que rompesse o asfalto como Vitor fez, pois as conseqüências são – e foram – muito graves. A todos que queiram dizer sobre isso, façam silêncio, parem os negócios e olhem atentamente essa flor. A deformação no rosto causada pela brutalidade desses monstros, os efeitos que o jovem carregará pelo resto da vida fazem com que esta flor não seja bela, inclassificável e, por isso, feia. Essa flor rara chama-se humanidade como ato de deslocamento. Vitor expressou sua humanidade ao deslocar-se de si para viver na pele a dor do outro. Ao fazer isso, em tempos modernos, deu-nos novamente o único sentido que deveriam ter palavras como coragem, amor, humanidade e heroísmo.
Fico imaginando a força de vontade coletiva de jovens que deram seus tempos caros para ombrear-se com os moradores do Pinheiro, somada a esse ato de coragem e heroísmo de Vitor. Se a juventude, incomodada com a realidade dos tempos difíceis em que vivemos, pudesse ousar para além do incômodo... A ação de Vitor, muito louvável e necessária de não ser esquecida, peca por se dar em um momento, num caso específico e com danos violentos. A ação da juventude que ousa tomar as ruas, também louvável e necessária de ser repetida, peca pelos limites que separa o “eu” do outro. Esse limite entre o "eu" e o outro em Vitor foi absurdamente rompido a ponto de o mesmo ocupar desgraçada e espacialmente o chão e a dor do mendigo. Somos co-autores desses crimes que se repetem cotidianamente sempre quando esquecemos. Vitor não terá como esquecer, os moradores do Pinheirinho também não. Sento-me em frente ao meu notebook, para poder passar a mão nessa forma insegura. Pelos seus efeitos, essa flor é feia. Mas se ousássemos para além de nós mesmos e nos tornássemos coletivamente uma flor feia, furaríamos o asfalto, o tédio, o nojo e ódio.

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