“Há
um arco-íris ligando o que sonha e o que entende – e por essa frágil ponte
circula um mundo maravilhoso e terrível, que os não iniciados apenas de longe
percebem, mas de cuja grandeza se vêem separados por muralhas estranhas, que
tanto afastam como atraem.”
Cecília
Meireles
Permita-me o simbolista francês adaptar
seus versos para compreender esse espetáculo humano, cuja materialidade
estende-se como um grande tapete na Avenida Paulista. Observemos esse belo
pedaço de paisagem que do extremo da luminosidade segue harmoniosamente para o
limite das sombras. Do vermelho vivo revolucionário, transforma-se ao primeiro
contato com a claridade alaranjada nas janelas dos prédios em volta. O amarelo
da luz solar, fugindo pelas brechas do céu nublado, reflete e confunde-se com
o reflexo azul cinzento dos céus e se transforma em uma faixa verdejante,
derramando-se nos trechos arborizados do Trianon. Em sentido descendente, o
azul borrifado de nuvens transforma-se, aos poucos, em espiritualidade lilás.
Essa luminosidade limítrofe, como chama
viva, surge da coragem desses transeuntes resolvidos a não quererem mais o
medo. Transformadas pelo vermelho sangue, manifestação impulsionadora da vida,
essas multidões caminham firmes, mesmo que puxando correntes medrosas.
Sentem-se oprimidas pela certeza da segunda-feira em que o cruel silêncio as
aprisionará novamente. Contudo, seguem convictas em busca da cura. Não uma cura
hipócrita pregada nos púlpitos sangrentos, mas a cura alaranjada que as
fizessem totalmente livres, mesmo fosse por um domingo, mesmo no anonimato,
mesmo longe de casa. Saíram para livrar-se daquele cheiro de naftalina, cujo
odor se dissipa aos primeiros raios amarelos daquele tímido sol de domingo,
iluminando suas faces medrosas, fervendo-lhes o sangue e lhes fazendo sentir o
novo sobre seus rostos até penetrar a alma.
Esse calor dominical refresca-lhes,
compartilhando coletivamente a tranquilidade dos que caminham por pastos
verdejantes. Tais sentidos, para aquela multidão, eram impossíveis traduzir-se
em palavras: era a pura arte azulando a existência na riqueza criativa das
vestimentas, ou da quase ausência de roupas.
Circulam drag-queens glamourosas,
barbies esculturalmente gregas, travestis cujos seios expostos anunciam outra
lógica de feminilidade. Também mulheres, cujas trocas carinhosas anunciam o
direito à propriedade de si mesmas ao afirmarem-se, nesses afetos, donas de
seus corpos e desejos. Incontáveis mulheres e homens comuns e anônimos circulam
livremente pelo coração financeiro de São Paulo. Um mar de gente se derrama pela mais cosmopolita das avenidas paulistanas e do qual eu sou apenas mais um. É a pura arte da vida manifesta intraduzivelmente por aquela multidão como um
grande Espírito violeta. São os indesejáveis que se enxergam, se reconhecem e,
nesse reconhecimento, fortalecem-se levados ao extase do sentido de
pertencimento, libertos pela junção daquele grande arco-íris derramando-se na
Avenida Paulista.
Essa diversidade de cores é alterada
constantemente pelo frenético deslocamento entre sombra e luz, agitadas
pelo trabalho interior do calórico, encontram-se em perpétua vibração, o que
faz tremer as linhas e completar a lei do movimento eterno e universal. O mar,
essa multidão, algumas vezes vermelha, outras laranja, amarela, verde, azul e
violeta, estende-se até os confins do céu. As árvores envoltas são verdes com
suas flores roxas. O asfalto, neste momento, parece uma grande campina,
confundindo-se com o verde nos canteiros frente ao MASP.
O que chama a atenção é a
complementaridade com o vermelho das roupas, a cor laranja das perucas, o
amarelo dos leques, os quais, no contraste com o verde, o enaltece. Tanto o
azul vaporoso do céu, quanto os contornos violetas das maquiagens que borboleteiam
nesse mosaico de cores como vaga-lumes a acender e apagar ininterruptamente
transformam-se em uma grande sinfonia diurna, com eternas pequenas variações. A
esta sucessão de melodias, em que a variação é sempre resultado da infinidade,
a este hino complexo, chamamos arco-íris. Ao estender-se sobre a terra,
torna-se uma ponte entre o humano e o divino: as portas do céu se abrem para
receber a passagem dessa grande festa. A extensão dessa ponte é um convite para
a humanidade se elevar às alturas e contemplar as belezas da Terra ainda não
vistas. Também, os deuses se oferecem a descer ao mundo e agraciar aqueles e
aquelas que se deixam possuir pelas cores.
Por sobre este mar de gente serpenteia a
bandeira desmanchando-se em luz, cura, sol, calma, arte e espiritualidade como
sintonia da luta pelo direito de existência. Ato? Manifestação? Parada? Festa?
Carnaval? Micareta? Qual o nome? Essa angústia de nominar não diz nada da coisa
em si, mas apenas o lugar no mundo ocupado por quem tem a necessidade do substantivo.
Para muitas coisas importantes na vida não há nome que basta. A magia do
Arco-Íris é se mostrar de modo particular para quem o contempla. As cores
existem na capacidade de cada olhar: metamorfoseiam-se para cada universo único
e insubstituível que chamamos humano. Contudo, para os que têm lacuna de
vocabulário, se lhes parecer melhor, que digam: isto é uma festa política.
A luminosidade do arco alcança pessoas
para além daquele espaço geográfico: encontra o medo dos que insistem viver sob
as normas. Aquele grande arco-íris humano estende-se para além da Avenida. As
pessoas que se deixam encantar com essas cores são tomadas por uma profunda
calma. Respiram ao largo. Essa transmissão de energia cega os paranóicos e
provoca reações criativas nos que têm sede de justiça. Estes são tomados pelo
impulso da desconstrução e da reinvenção de suas amargosas existências: é o
efeito da pura arte que desperta a espiritualidade mais profunda de se
entenderem e se realizarem pelo que são, pelo que percebem e pelo modo como
sentem o mundo.
Não somente esses aprisionados
experimentam uma profunda sensação de liberdade. Ao saírem de seus armários,
arrancam consigo familiares que, aos poucos, deixam de olhar distorcidamente
para verem como são em sua complexidade. O espelho trincado. Veja aquela mãe temerosa pela sina de sua
filha lésbica: o efeito do arco-íris em seus olhos a faz compreender algo maior
que seu temor; aquele pai receoso do filho viadinho: o encanto das cores o faz
entender que a felicidade é mais importante que a falaciosa masculinidade. Por
que todas as cores concordam na escuridão.
Dissipa-se o temor. A luminosidade
espanta o isolamento dos quartos. A solidão desfaz-se ao primeiro toque do
pincel mágico. Já não se calam nem desejos nem sentimentos. A dramática
invisibilidade colore-se, grávida de futuro. Os espíritos daltônicos jamais
compreendem essa festa das cores. Certos do binarismo cromático, arreganham
seus dentes e vociferam ofensas. Mal sabem que a naturalização do mundo em
branco e preto resulta de uma gravíssima acromatose. São incapazes de
reconhecerem a luz do sol e o brilho da noite.
Essas cores que se estendem da Casa das
Rosas à Praça da República parecem infinitas e únicas. Contudo, a realidade é
que as cores são poucas, mas o justo lugar que ocupam de modo tão particular
cria o encanto do infinito. Basta que se distribuam por si mesmas nos tons
certos e nos limites apropriados para que se tenha a plena diversidade.
Pelas inúmeras realidades que põe em
cena, a Parada torna-se uma curiosa ironia, pois junta em si vivências
antagônicas conjugando-se em liberdade e excluindo-se em terrível barbárie. A
rua, diria o dandy brasileiro, é o lugar que persiste e fica como legado das
gerações. Ela é o espaço por excelência dessa grande festa e, nela, o
sentimento imperturbável e indissolúvel permanece e resiste às idades e às
épocas. Tudo transforma-se e se esvai, seja a volubilidade do amor, do ódio ou
do egoísmo manifesto em amargoso riso ou em dolorosa ironia. As pessoas passam,
os anos findam-se, os séculos deslizam e com tudo isso vão-se as coisas fúteis
ou notáveis. As ruas ficam, pois tem alma. Os homens, para se perderem,
precisam prender-se em suas casas ou nos
escritórios. Mas é na rua, e só na rua, que poderiam experimentar a profunda
sensação da liberdade. É nela que se encontram os vizinhos, que se afogam os
amores frustrados, que o indigente é acolhido, que permite dilacerar a solidão.
O doutor, no escritório, perde a rua com a pressa das horas e as vidraças da
janela. Há suor humano nos espasmos derramados pelo calçamento das ruas, diria
o cronista carioca. E é na rua que se avista a materialidade desse grande
arco-íris.
Mas o que fazer, se entre beijos e
bebidas, há carteiras furtadas ou arrastões? Como separar-nos desses indigestos
que teimam em nos afrontar nesse espaço de agremiação? Talvez cordões e abadás
pudessem dar segurança e reduzir ao mínimo essa inconveniente realidade na
Parada? Somente um cérebro atrofiado poderia propor algo tão acromático. A
Parada traz a público os estilhaços da cultura capitalista impossíveis de serem
controlados. Estilhaços que sobram nesse sistema: nós, os indesejáveis, e eles,
a quem chamam de vândalos. Vivemos a frustração da modernidade com suas grades
que nos reduz ao gueto do consumismo. Nossos algozes nos educaram a vermos o
mundo com o olhar da exclusão. Mesmo os mais radicais sofrem a terrível
cegueira de entender a realidade como valor de troca e uso. Os capitalistas
tentam, mas não conseguem engolir esse grande evento, pois seu material é a
total escória, os párias, os malditos, os estilhaços incontroláveis dessa
abominação cognitiva que o leitor chama de sistema. Nós, vândalos da
moralidade, não somos materiais de interesse nem para a esquerda nem para a
direita: os radicais higienizaram a pobreza pelo arquétipo do operário; os
capitalistas, por sua vez, reduziram-na a mera máquina de trabalho. Quantas
travestis formam um operário? Quantas trepadas cabem numa máquina de trabalho?
Ora, ora, as duas coisas mais estúpidas
já inventadas pelo discurso iluminista: o trabalho e a economia. E por acaso
não são ambas responsáveis por fazer funcionar as maquinarias da modernidade?
Sim, leitor obtuso. Mas, por acaso, o leitor não percebe que somos reféns de
nossa ficcionalidade? Inventamos Deus, o Amor e a Ciência e já não conseguimos
existir sem estas três ficções. Também o trabalho e a economia: duas grandes
mentiras que movimentam a grande roda do mundo.
Veja leitor: o homem engravatado do outro
lado da rua, caminhando na aflição das horas. Ele não apenas trabalha por um salário, mais que isso, ele desenvolve um papel nesse grande teatro
moderno... esse olhar constante no relógio, esse caminhar frenético, essa
presteza em chegar é a pantomima dessa farsa que, às vezes, pode ser uma
divertida tragédia ou uma terrível comédia. Quando os estilhaços do sistema
voam e escapam ao controle dessa companhia teatral, no lugar de empregos, a
travesti, o negro, a pintosa, a lavadeira, a curandeira, o cigano criam seus
próprios espaços. Não podem caber em nichos uniformes e repetitivos, pois suas
formas estão sempre fora de medida.
O prisma lapidado em Stonewall
refletiu suas cores em escalas inimagináveis. Quase meio século, após o primeiro
arco-íris se expandir, vê-se o efeito poderoso de suas cores. Em chão de terra,
segue uma pequena caminhonete cercada desses encantados.

Uma Praça
Vermelha e cem anos sem Parada: Cartazes mal levantados são arrancados
violentamente pela polícia. Vestidos com seus mantos negros, ortodoxos ditam a
lei do silêncio à passagem das cores por Moscou. Nem o Estado, nem a Fé e nem
os mais de cem mil nazistas conseguem apagar a chama provocada pelo arco-íris
no coração de rapazes e moças que entendem ser a diversidade uma dádiva da
vida.
E de lá - seja
esse lá o lugar que for - essas pessoas voltam seus olhares esperançosos para a
Paulista. Nesse desfile de cores, entendem a força luminosa do vermelho, a cura
milagrosa do laranja, a energia solar do amarelo, a calma do verde, a arte do
azul e a presença de espírito do lilás. Todas essas cores seguem em harmonia,
fazendo um único movimento que se traduz em esperança de que, um dia, eles
poderão rasgar o céu e torná-lo menos cinzento.
Dário, querido, a poética entre as cores e a cena ficou linda. Adorei também a descrição da terceira imagem, acho um dos mais belos registros visuais da história.
ResponderExcluirobrigado, querido... fico feliz que tenha gostado...
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