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segunda-feira, 3 de junho de 2013

A DANÇA DAS CORES: PARADA DO ORGULHO LGBT



“Há um arco-íris ligando o que sonha e o que entende – e por essa frágil ponte circula um mundo maravilhoso e terrível, que os não iniciados apenas de longe percebem, mas de cuja grandeza se vêem separados por muralhas estranhas, que tanto afastam como atraem.”
Cecília Meireles




Permita-me o simbolista francês adaptar seus versos para compreender esse espetáculo humano, cuja materialidade estende-se como um grande tapete na Avenida Paulista. Observemos esse belo pedaço de paisagem que do extremo da luminosidade segue harmoniosamente para o limite das sombras. Do vermelho vivo revolucionário, transforma-se ao primeiro contato com a claridade alaranjada nas janelas dos prédios em volta. O amarelo da luz solar, fugindo pelas brechas do céu nublado, reflete e confunde-se com o reflexo azul cinzento dos céus e se transforma em uma faixa verdejante, derramando-se nos trechos arborizados do Trianon. Em sentido descendente, o azul borrifado de nuvens transforma-se, aos poucos, em espiritualidade lilás.
  

 Essa luminosidade limítrofe, como chama viva, surge da coragem desses transeuntes resolvidos a não quererem mais o medo. Transformadas pelo vermelho sangue, manifestação impulsionadora da vida, essas multidões caminham firmes, mesmo que puxando correntes medrosas. Sentem-se oprimidas pela certeza da segunda-feira em que o cruel silêncio as aprisionará novamente. Contudo, seguem convictas em busca da cura. Não uma cura hipócrita pregada nos púlpitos sangrentos, mas a cura alaranjada que as fizessem totalmente livres, mesmo fosse por um domingo, mesmo no anonimato, mesmo longe de casa. Saíram para livrar-se daquele cheiro de naftalina, cujo odor se dissipa aos primeiros raios amarelos daquele tímido sol de domingo, iluminando suas faces medrosas, fervendo-lhes o sangue e lhes fazendo sentir o novo sobre seus rostos até penetrar a alma.
Esse calor dominical refresca-lhes, compartilhando coletivamente a tranquilidade dos que caminham por pastos verdejantes. Tais sentidos, para aquela multidão, eram impossíveis traduzir-se em palavras: era a pura arte azulando a existência na riqueza criativa das vestimentas, ou da quase ausência de roupas.
Circulam drag-queens glamourosas, barbies esculturalmente gregas, travestis cujos seios expostos anunciam outra lógica de feminilidade. Também mulheres, cujas trocas carinhosas anunciam o direito à propriedade de si mesmas ao afirmarem-se, nesses afetos, donas de seus corpos e desejos. Incontáveis mulheres e homens comuns e anônimos circulam livremente pelo coração financeiro de São Paulo. Um mar de gente se derrama pela mais cosmopolita das avenidas paulistanas e do qual eu sou apenas mais um. É a pura arte da vida manifesta intraduzivelmente por aquela multidão como um grande Espírito violeta. São os indesejáveis que se enxergam, se reconhecem e, nesse reconhecimento, fortalecem-se levados ao extase do sentido de pertencimento, libertos pela junção daquele grande arco-íris derramando-se na Avenida Paulista.
Essa diversidade de cores é alterada constantemente pelo frenético deslocamento entre sombra e luz, agitadas pelo trabalho interior do calórico, encontram-se em perpétua vibração, o que faz tremer as linhas e completar a lei do movimento eterno e universal. O mar, essa multidão, algumas vezes vermelha, outras laranja, amarela, verde, azul e violeta, estende-se até os confins do céu. As árvores envoltas são verdes com suas flores roxas. O asfalto, neste momento, parece uma grande campina, confundindo-se com o verde nos canteiros frente ao MASP.
O que chama a atenção é a complementaridade com o vermelho das roupas, a cor laranja das perucas, o amarelo dos leques, os quais, no contraste com o verde, o enaltece. Tanto o azul vaporoso do céu, quanto os contornos violetas das maquiagens que borboleteiam nesse mosaico de cores como vaga-lumes a acender e apagar ininterruptamente transformam-se em uma grande sinfonia diurna, com eternas pequenas variações. A esta sucessão de melodias, em que a variação é sempre resultado da infinidade, a este hino complexo, chamamos arco-íris. Ao estender-se sobre a terra, torna-se uma ponte entre o humano e o divino: as portas do céu se abrem para receber a passagem dessa grande festa. A extensão dessa ponte é um convite para a humanidade se elevar às alturas e contemplar as belezas da Terra ainda não vistas. Também, os deuses se oferecem a descer ao mundo e agraciar aqueles e aquelas que se deixam possuir pelas cores.
Por sobre este mar de gente serpenteia a bandeira desmanchando-se em luz, cura, sol, calma, arte e espiritualidade como sintonia da luta pelo direito de existência. Ato? Manifestação? Parada? Festa? Carnaval? Micareta? Qual o nome? Essa angústia de nominar não diz nada da coisa em si, mas apenas o lugar no mundo ocupado por quem tem a necessidade do substantivo. Para muitas coisas importantes na vida não há nome que basta. A magia do Arco-Íris é se mostrar de modo particular para quem o contempla. As cores existem na capacidade de cada olhar: metamorfoseiam-se para cada universo único e insubstituível que chamamos humano. Contudo, para os que têm lacuna de vocabulário, se lhes parecer melhor, que digam: isto é uma festa política.
A luminosidade do arco alcança pessoas para além daquele espaço geográfico: encontra o medo dos que insistem viver sob as normas. Aquele grande arco-íris humano estende-se para além da Avenida. As pessoas que se deixam encantar com essas cores são tomadas por uma profunda calma. Respiram ao largo. Essa transmissão de energia cega os paranóicos e provoca reações criativas nos que têm sede de justiça. Estes são tomados pelo impulso da desconstrução e da reinvenção de suas amargosas existências: é o efeito da pura arte que desperta a espiritualidade mais profunda de se entenderem e se realizarem pelo que são, pelo que percebem e pelo modo como sentem o mundo.
Não somente esses aprisionados experimentam uma profunda sensação de liberdade. Ao saírem de seus armários, arrancam consigo familiares que, aos poucos, deixam de olhar distorcidamente para verem como são em sua complexidade. O espelho trincado.  Veja aquela mãe temerosa pela sina de sua filha lésbica: o efeito do arco-íris em seus olhos a faz compreender algo maior que seu temor; aquele pai receoso do filho viadinho: o encanto das cores o faz entender que a felicidade é mais importante que a falaciosa masculinidade. Por que todas as cores concordam na escuridão.
Dissipa-se o temor. A luminosidade espanta o isolamento dos quartos. A solidão desfaz-se ao primeiro toque do pincel mágico. Já não se calam nem desejos nem sentimentos. A dramática invisibilidade colore-se, grávida de futuro. Os espíritos daltônicos jamais compreendem essa festa das cores. Certos do binarismo cromático, arreganham seus dentes e vociferam ofensas. Mal sabem que a naturalização do mundo em branco e preto resulta de uma gravíssima acromatose. São incapazes de reconhecerem a luz do sol e o brilho da noite. 
Essas cores que se estendem da Casa das Rosas à Praça da República parecem infinitas e únicas. Contudo, a realidade é que as cores são poucas, mas o justo lugar que ocupam de modo tão particular cria o encanto do infinito. Basta que se distribuam por si mesmas nos tons certos e nos limites apropriados para que se tenha a plena diversidade.
            Pelas inúmeras realidades que põe em cena, a Parada torna-se uma curiosa ironia, pois junta em si vivências antagônicas conjugando-se em liberdade e excluindo-se em terrível barbárie. A rua, diria o dandy brasileiro, é o lugar que persiste e fica como legado das gerações. Ela é o espaço por excelência dessa grande festa e, nela, o sentimento imperturbável e indissolúvel permanece e resiste às idades e às épocas. Tudo transforma-se e se esvai, seja a volubilidade do amor, do ódio ou do egoísmo manifesto em amargoso riso ou em dolorosa ironia. As pessoas passam, os anos findam-se, os séculos deslizam e com tudo isso vão-se as coisas fúteis ou notáveis. As ruas ficam, pois tem alma. Os homens, para se perderem, precisam prender-se  em suas casas ou nos escritórios. Mas é na rua, e só na rua, que poderiam experimentar a profunda sensação da liberdade. É nela que se encontram os vizinhos, que se afogam os amores frustrados, que o indigente é acolhido, que permite dilacerar a solidão. O doutor, no escritório, perde a rua com a pressa das horas e as vidraças da janela. Há suor humano nos espasmos derramados pelo calçamento das ruas, diria o cronista carioca. E é na rua que se avista a materialidade desse grande arco-íris.
            Mas o que fazer, se entre beijos e bebidas, há carteiras furtadas ou arrastões? Como separar-nos desses indigestos que teimam em nos afrontar nesse espaço de agremiação? Talvez cordões e abadás pudessem dar segurança e reduzir ao mínimo essa inconveniente realidade na Parada? Somente um cérebro atrofiado poderia propor algo tão acromático. A Parada traz a público os estilhaços da cultura capitalista impossíveis de serem controlados. Estilhaços que sobram nesse sistema: nós, os indesejáveis, e eles, a quem chamam de vândalos. Vivemos a frustração da modernidade com suas grades que nos reduz ao gueto do consumismo. Nossos algozes nos educaram a vermos o mundo com o olhar da exclusão. Mesmo os mais radicais sofrem a terrível cegueira de entender a realidade como valor de troca e uso. Os capitalistas tentam, mas não conseguem engolir esse grande evento, pois seu material é a total escória, os párias, os malditos, os estilhaços incontroláveis dessa abominação cognitiva que o leitor chama de sistema. Nós, vândalos da moralidade, não somos materiais de interesse nem para a esquerda nem para a direita: os radicais higienizaram a pobreza pelo arquétipo do operário; os capitalistas, por sua vez, reduziram-na a mera máquina de trabalho. Quantas travestis formam um operário? Quantas trepadas cabem numa máquina de trabalho?
Ora, ora, as duas coisas mais estúpidas já inventadas pelo discurso iluminista: o trabalho e a economia. E por acaso não são ambas responsáveis por fazer funcionar as maquinarias da modernidade? Sim, leitor obtuso. Mas, por acaso, o leitor não percebe que somos reféns de nossa ficcionalidade? Inventamos Deus, o Amor e a Ciência e já não conseguimos existir sem estas três ficções. Também o trabalho e a economia: duas grandes mentiras que movimentam a grande roda do mundo.
Veja leitor: o homem engravatado do outro lado da rua, caminhando na aflição das horas. Ele não apenas trabalha por um salário, mais que isso, ele desenvolve um papel nesse grande teatro moderno... esse olhar constante no relógio, esse caminhar frenético, essa presteza em chegar é a pantomima dessa farsa que, às vezes, pode ser uma divertida tragédia ou uma terrível comédia. Quando os estilhaços do sistema voam e escapam ao controle dessa companhia teatral, no lugar de empregos, a travesti, o negro, a pintosa, a lavadeira, a curandeira, o cigano criam seus próprios espaços. Não podem caber em nichos uniformes e repetitivos, pois suas formas estão sempre fora de medida. 
    O prisma lapidado em Stonewall refletiu suas cores em escalas inimagináveis. Quase meio século, após o primeiro arco-íris se expandir, vê-se o efeito poderoso de suas cores. Em chão de terra, segue uma pequena caminhonete cercada desses encantados. 
Vários cartazes, bandeiras e a certeza da pena de morte como recompensa: ugandenses tomam a rua, esse chão de terra, para defenderem o direito à vida. Empunham cartazes com dizeres "Africano e Gay: não é uma escolha.", "Estamos juntos aqui por aqueles que não podem estar" ou "Matar gays não resolve nada". Para muitos, o que chama a atenção e possa interessar são esses cartazes que dão o tom político à parada ugandense. Considero banal. As palavras não traduzem o que de fato seja o que eles sentem e como lidam com tão terrível realidade. As palavras de ordem, na atualidade, estão vazias e pisadas: perderam seu sentido. O que chama a atenção é o grito, o grito surdo, o grito incompreensível carregado de dor e ousadia. Em um país que legalmente mata homossexuais, ver um jovem seminu coberto apenas com a bandeira do arco-íris e acentuando uma feminilidade africana em seu corpo é, sem sombra de dúvidas, um dos raríssimos atos de coragem e afrontamento à opressão que a história já pôde registrar. Ele não empunha armas, não prepara mísseis, não planeja ocupar espaço algum a não ser o seu próprio corpo. Mesmo que um dia, mesmo que talvez seja a última vez na vida, ergue-se para desconstruir no seu corpo aquilo que o oprime. Diante desse grito ugandense, ressoa a voz de David Kato, um ativista gay ugandense cuja vida foi tirada, e ecoa em minha alma.  Esses meninos lançam como ato de fé uma esperança para o futuro.
       

 Uma Praça Vermelha e cem anos sem Parada: Cartazes mal levantados são arrancados violentamente pela polícia. Vestidos com seus mantos negros, ortodoxos ditam a lei do silêncio à passagem das cores por Moscou. Nem o Estado, nem a Fé e nem os mais de cem mil nazistas conseguem apagar a chama provocada pelo arco-íris no coração de rapazes e moças que entendem ser a diversidade uma dádiva da vida.



         E de lá - seja esse lá o lugar que for - essas pessoas voltam seus olhares esperançosos para a Paulista. Nesse desfile de cores, entendem a força luminosa do vermelho, a cura milagrosa do laranja, a energia solar do amarelo, a calma do verde, a arte do azul e a presença de espírito do lilás. Todas essas cores seguem em harmonia, fazendo um único movimento que se traduz em esperança de que, um dia, eles poderão rasgar o céu e torná-lo menos cinzento.


2 comentários:

  1. Dário, querido, a poética entre as cores e a cena ficou linda. Adorei também a descrição da terceira imagem, acho um dos mais belos registros visuais da história.

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