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domingo, 16 de junho de 2013

POR CAUSA DE VINTE CENTAVOS?



Toda a verdade abstrata é sem valor se não estiver encarnada em homens que a apresentam e provam estar prontos a morrer por ela. Mahatma Gandhi


Não acredito que seja preciso contextualizar o tema deste assunto, dada a grande repercussão que a impressa tem dado às manifestações - embora de forma distorcida - nesta última semana. Sobretudo nas matérias escritas, mas também nas conversas cotidianas, o comentário mais comum que se lê ou se ouve é: mas só por causa de vinte centavos?



            Em análise de discurso, pode-se classificar tal pergunta como litote, figura retórica cuja função é suavizar, reduzir um determinado fato ou objeto para amenizar uma dada situação ou, como nesse caso das manifestações, deslegitimar os protestos contra o aumento das passagens. Há nessa pergunta uma dose forte de redução da situação em si com objetivo de desqualificar as manifestações tornando-as insignificantes, isto é, à medida em que a opinião comum (produzida midiaticamente) acredite não haver outro motivo para além dos vinte centavos e que pense o aumento na passagem em si e ignore o efeito simbólico e material que a mesma acarreta, passa a aceitar as manifestações como ato de vandalismo. Usada retoricamente, a litote tem um efeito poderoso de tornar real o irreal ou absurdo. Veja: a pergunta não ataca diretamente os manifestantes, não faz referência direta à situação de violência, nem coloca em questão quem tem sido violento de fato, se a PM, se os manifestantes.
            A pergunta atinge o coração do protesto: refere-se ao motivo porque as pessoas vão ou deveriam ir às ruas. Ao fazer referência aos vinte centavos, esse questionamento reduz a força do motivo da manifestação e, ao fazê-la, legitima os diversos discursos que se contrapõem ao protesto. Se o leitor/leitora aceita que manifestar contra o aumento de vinte centavos é um absurdo, pois as coisas aumentam cotidianamente e porque vinte centavos em si não tem valor, logo,  buscará o motivo do protesto em outros fatores: disputas partidárias, necessidade psíquica de reviver a época da ditadura, rebeldia sem causa, vandalismo passam a fazer sentido para ele.  Esse pressuposto sobre o qual o discurso conservador tem batido tanto na tecla, sendo aceita, legitima as críticas mais absurdas feitas por Arnaldo Jabor, Reinaldo Azevedo, Folha de São Paulo, Estadão e outros diferentes veículos midiáticos que estão a serviço da manutenção dos grandes partidos.
            Proponho uma outra perspectiva de leitura: ao invés de aceitar a questão do aumento pela redução, isto é, achar que todos esses protestos sejam apenas por causa de vinte centavos, proponho que o leitor e a leitora mudem a pergunta: ao invés de se questionarem "Esses protestos são feitos apenas por causa de vinte centavos?" devam se perguntar: "O que esses vinte centavos significam para fazer com que mais de 20 mil pessoas tomem às ruas, mesmo sabendo da possível violência policial?" Em termos discursivos, proponho que se perceba a sinédoque  da situação. Figura retórica mais complexa que a litote,  a sinédoque consiste na atribuição do todo pela parte. Neste caso específico, os vintes centavos é efeito de uma causa perversa que chamaremos de falência do transporte público ou, em termos mais concretos, a gota de d'água de um problema grave e mais profundo que vivemos nas grandes cidades do Brasil.
            Dois motivos tornaram a circulação na cidade de São Paulo algo desafiador: o crescimento descontrolado de carros e a falta de um planejamento e investimento público de qualidade no transporte coletivo. Conforme noticiou a revista Exame em outubro de 2012[1], o crescimento de carros nas doze metrópoles do Brasil praticamente dobrou de 2001 a 2011: aumentou de 11,5 milhões para 20, 5 milhões. Citando o relatório elaborado pelo urbanista Juciano Martins Rodrigues para o Departamento Nacional de Trânsito, o crescimento da frota de carros na cidade de São Paulo foi de 67% nestes últimos dez anos. Por outro lado, o investimento do transporte público nessas cidades tem sido muito aquém do preciso. Conforme pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA em 2011, 55% dos usuários de transporte coletivo estão insatisfeitos, sendo motivos dessa insatisfação a lentidão e a demora para conseguir o transporte, além do alto preço do transporte público. A pesquisa mostrou que 65% da população das grandes cidades utilizam o transporte[2].
            Mostrar tais pesquisas torna-se importante para vermos que o descontentamento cotidiano com o transporte coletivo é um descontentamento geral e não individual. Quem faz uso desse serviço sabe muito bem como são demorados, lotados e caros. Para quem se locomove da periferia de São Paulo ao centro e vice-versa, sabe muito bem que a situação do transporte piora quanto mais afastado for do centro. Finais de semana, sobretudo domingo quando os trabalhadores têm seu dia livre para um passeio à cidade, a circulação torna-se desestimulante, pois aquilo que já é ruim, fica pior ainda. Logo, reduzir esses protestos a vinte centavos como tem feito os paladinos midiáticos é injusto, desonesto e imoral. Quem necessita de transporte coletivo tem visto anualmente o preço da passagem crescer e a qualidade do serviço cair.
            Posto isso, convido o leitor e a leitora a uma leitura crítica da situação de calamidade pública que vivemos hoje em São Paulo: a falta de investimento nos transportes coletivos, mesmo em véspera de Copa do Mundo, mostra o descaso e a improbidade administrativa do Governo. Ao mesmo tempo, vale lembrar, o salário dos que prestam serviço nesses transportes não acompanham esse aumento. Tudo isso cria uma grande bola de neve que se arrebenta na cabeça e no bolso das pessoas usuárias desses serviços.
            Cabe uma última observação: porque, apesar de evidente o caos que vivemos quanto ao transporte coletivo, essas diferentes mídias ainda se esforçam a inocentar o governo e culpar os manifestantes que reivindicam, para além da baixa do preço, um transporte digno e de qualidade para toda a população? Essa pergunta leva-nos a um outro problema político dessa suposta "democracia" que vivemos: a concessão pública dos meios de comunicação a grupos sociais que beneficiam esses governos. Com isso, os que tem a mídia sob controle, podem distorcer a realidade mais dolorosa que vivemos e criminalizar aqueles e aquelas que se dispõe a lutar por uma vida mais digna em nosso país. Para tanto, fazem usos abusivos de recursos retóricos, levando o leitor ao engano sobre quem de fato tem vandalizado cotidianamente a vida de milhares de brasileiros.
            Por isso, tomemos à rua, aprendamos com essa juventude que dispõe do seu tempo e da sua vida para denunciar a injustiça que esses vinte centavos são efeito de uma causa terrível: a calamidade de transporte público que vivemos em São Paulo e no Brasil.

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