Toda a verdade abstrata é sem valor se não estiver encarnada em homens que a apresentam e provam estar prontos a morrer por ela. Mahatma Gandhi
Não
acredito que seja preciso contextualizar o tema deste assunto, dada a grande
repercussão que a impressa tem dado às manifestações - embora de forma
distorcida - nesta última semana. Sobretudo nas matérias escritas, mas também
nas conversas cotidianas, o comentário mais comum que se lê ou se ouve é:
mas só por causa de vinte centavos?
Em análise de discurso, pode-se
classificar tal pergunta como litote,
figura retórica cuja função é suavizar, reduzir um determinado fato ou objeto
para amenizar uma dada situação ou, como nesse caso das manifestações,
deslegitimar os protestos contra o aumento das passagens. Há nessa pergunta uma
dose forte de redução da situação em si com objetivo de desqualificar as
manifestações tornando-as insignificantes, isto é, à medida em que a opinião comum
(produzida midiaticamente) acredite não haver outro motivo para além dos vinte
centavos e que pense o aumento na passagem em si e ignore o efeito simbólico e material que a
mesma acarreta, passa a aceitar as manifestações como ato de vandalismo. Usada retoricamente, a litote tem um efeito poderoso de tornar real o irreal ou absurdo. Veja: a pergunta não ataca diretamente os
manifestantes, não faz referência direta à situação de violência, nem coloca em
questão quem tem sido violento de fato, se a PM, se os manifestantes.
A pergunta atinge o coração do
protesto: refere-se ao motivo porque as pessoas vão ou deveriam ir às ruas. Ao
fazer referência aos vinte centavos, esse questionamento reduz a força do motivo da manifestação e, ao fazê-la, legitima os diversos
discursos que se contrapõem ao protesto. Se o leitor/leitora aceita que manifestar
contra o aumento de vinte centavos é um absurdo, pois as coisas aumentam
cotidianamente e porque vinte centavos em si não tem valor, logo, buscará o motivo do protesto em outros fatores: disputas
partidárias, necessidade psíquica de reviver a época da ditadura, rebeldia sem
causa, vandalismo passam a fazer sentido para ele. Esse pressuposto sobre o qual o discurso
conservador tem batido tanto na tecla, sendo aceita, legitima as críticas mais
absurdas feitas por Arnaldo Jabor, Reinaldo Azevedo, Folha de São Paulo,
Estadão e outros diferentes veículos midiáticos que estão a serviço da
manutenção dos grandes partidos.
Proponho uma outra perspectiva de leitura: ao invés de aceitar a questão do aumento pela redução, isto é, achar
que todos esses protestos sejam apenas por causa de vinte centavos, proponho
que o leitor e a leitora mudem a pergunta: ao invés de se questionarem "Esses protestos
são feitos apenas por causa de vinte centavos?" devam se perguntar:
"O que esses vinte centavos significam para fazer com que mais de 20 mil pessoas
tomem às ruas, mesmo sabendo da possível violência policial?" Em termos
discursivos, proponho que se perceba a sinédoque da situação. Figura
retórica mais complexa que a litote, a sinédoque consiste na atribuição do todo
pela parte. Neste caso específico, os vintes centavos é efeito de uma causa perversa
que chamaremos de falência do transporte público ou, em termos mais concretos, a gota de d'água de um problema grave e mais profundo que vivemos nas grandes
cidades do Brasil.
Dois motivos tornaram a circulação
na cidade de São Paulo algo desafiador: o crescimento descontrolado de carros e
a falta de um planejamento e investimento público de qualidade no transporte coletivo. Conforme noticiou a revista Exame em outubro de 2012[1], o
crescimento de carros nas doze metrópoles do Brasil praticamente dobrou de 2001
a 2011: aumentou de 11,5 milhões para 20, 5 milhões. Citando o relatório elaborado pelo urbanista
Juciano Martins Rodrigues para o Departamento Nacional de Trânsito, o
crescimento da frota de carros na cidade de São Paulo foi de 67% nestes últimos
dez anos. Por outro lado, o investimento do transporte público nessas cidades
tem sido muito aquém do preciso. Conforme pesquisa do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada - IPEA em 2011, 55% dos usuários de transporte coletivo
estão insatisfeitos, sendo motivos dessa insatisfação a lentidão e a demora
para conseguir o transporte, além do alto preço do transporte público. A
pesquisa mostrou que 65% da população das grandes cidades utilizam o transporte[2].
Mostrar
tais pesquisas torna-se importante para vermos que o
descontentamento cotidiano com o transporte coletivo é um descontentamento geral e não individual. Quem faz uso desse serviço sabe muito bem como são
demorados, lotados e caros. Para quem se locomove da periferia de São Paulo ao
centro e vice-versa, sabe muito bem que a situação do transporte piora quanto
mais afastado for do centro. Finais de semana, sobretudo domingo quando os trabalhadores têm seu dia livre para um passeio à cidade, a circulação torna-se
desestimulante, pois aquilo que já é ruim, fica pior ainda. Logo, reduzir esses
protestos a vinte centavos como tem
feito os paladinos midiáticos é injusto, desonesto e imoral. Quem necessita de transporte coletivo tem visto anualmente o preço da passagem crescer e a
qualidade do serviço cair.
Posto
isso, convido o leitor e a leitora a uma leitura crítica da situação de
calamidade pública que vivemos hoje em São Paulo: a falta de investimento nos
transportes coletivos, mesmo em véspera de Copa do Mundo, mostra o descaso e a
improbidade administrativa do Governo. Ao mesmo tempo, vale lembrar, o
salário dos que prestam serviço nesses transportes não acompanham esse aumento.
Tudo isso cria uma grande bola de neve que se arrebenta na cabeça e no bolso
das pessoas usuárias desses serviços.
Cabe
uma última observação: porque, apesar de evidente o caos que vivemos quanto ao
transporte coletivo, essas diferentes mídias ainda se esforçam a inocentar o
governo e culpar os manifestantes que reivindicam, para além da baixa do preço, um transporte digno e de qualidade para toda a população? Essa pergunta
leva-nos a um outro problema político dessa suposta "democracia" que
vivemos: a concessão pública dos meios de comunicação a grupos sociais que
beneficiam esses governos. Com isso, os que tem a mídia sob controle, podem
distorcer a realidade mais dolorosa que vivemos e criminalizar aqueles e
aquelas que se dispõe a lutar por uma vida mais digna em nosso país. Para
tanto, fazem usos abusivos de recursos retóricos, levando o leitor ao engano
sobre quem de fato tem vandalizado cotidianamente a vida de milhares de brasileiros.
Por
isso, tomemos à rua, aprendamos com essa juventude que dispõe do seu tempo e da
sua vida para denunciar a injustiça que esses vinte centavos são efeito de uma causa terrível: a calamidade de transporte público
que vivemos em São Paulo e no Brasil.
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