"Um mérito se deve reconhecer na hipocrisia: aprendeu a falar com sinceridade".
Emanuel Wetheimer
O episódio racista contra o jogador brasileiro Daniel Alves, durante o jogo entre Villareal e Barcelona no último domingo (27 de abril) fez pipocar uma reação em solidariedade ao jogador com a hashtag #somostodosmacacos. Conforme divulgado, quando o jogador foi cobrar um escanteio, alguém jogou-lhe uma banana. Como resposta, Daniel pegou-a e comeu. Considerando a atitude do jogador, da Campanha feita pela Empresa de Publicidade Loducca e iniciada pelo jogador Neymar (que também foi vítima de racismo em 16 de abril) e a reação de militantes do Movimento Negro com uma contra campanha chamada "não somos macacos", acredito que algumas coisas necessitam ser ponderadas.
A primeira é a reação de Daniel Alves diante da ofensa
sofrida. Como bem observou Douglas Belchior em seu artigo "Contra o racismo, nada de bananas, nada de macacos, por favor" (conforme o site), a reação de Daniel
Alves foi uma postura diante da violência sofrida. Contudo, não considero, como
o faz Belchior, que Alves tenha ignorado e rido, pelo contrário, dado o
anonimato da ofensa em momento de trabalho, ignorar seria não ter pego a
banana. O que Daniel fez foi afrontar a ofensa como melhor lhe pareceu no
momento: transformou o símbolo ofensivo em alimento, comendo-o. Poderia
simplesmente ter chutado a bola e feito o jogo rolar, mas sua atitude foi uma
resposta de esvaziamento da ofensa. Fez o que se chama de rebaixamento do
simbólico, o qual, para ter efeito usa do código material (a banana) para
provocar efeitos de sentido (chamá-lo de macaco). Daniel, ao pegar a banana (metonímia da ofensa) e comê-la, esvaziou seu sentido metonímico ( cuja a parte - a banana - remete ao objetivo da ofensa - associação ao macaco) e tornou-a ao sentido primeiro e material: nutrição adequada para quem faz atividade física. Neste sentido, não há como negar nesta ação o efeito positivo que provocou a discussão sobre o racismo no futebol europeu. Há
um riso sarcástico como mesmo falou Alves em entrevista, citado por Belchior: "Tem que ser assim! Não vamos mudar. Há 11 anos convivo
com a mesma coisa na Espanha. Temos que rir desses retardados". Um riso de rebaixamento da
ofensa como resposta às mentes tacanhas herdeiras do Nazismo.
Outra
coisa foi a campanha publicitária #somostodosmacacos. Alguns arriscaram
a comparação com o movimento da Marcha das Vadias[1]
e da chamada Teoria Queer[2],
por ambos movimentos apropriarem-se de termos recorrentemente usados como
insultos, esvaziarem seus sentidos ofensivos e positivá-los contra seus opressores.
Textualmente, a hashtag "somos todos macacos" tem a mesma proposta. Vejamos: Associar a população negra aos macacos, cuja origem dá-se com as teses positivistas/deterministas dos séculos XVIII e XIX, tem como justificativa legitimar a invasão da África pelos países europeus, no final do XIX, e, no caso do Brasil, para a manutenção do sistema escravocrata. O xingamento tem como efeito intencional a
diferenciação entre o eu e o outro, estabelecendo a desigualdade de direitos,
ou melhor, a defesa de privilégios do eu, em detrimento dos direitos
do outro. Chamar uma pessoa negra de macaca remete ao biologicismo evolucionista
que estabelece o selvagem (pessoa negra) e o civilizado (o ofensor) e, ao fazer
isso, demarca quem deve ter ou não garantido seus direitos, tornado em
privilégio. Em outras palavras, a expressão é a síntese metafórica do racismo
do século XIX que perdura com muita força e vigor no século XXI. A hashtag em
apoio ao Daniel Alves busca o movimento inverso que é o de esvaziamento, pois rompe a distinção
do eu e do outro, substituindo por uma coletividade "todos somos",
propondo-se em defesa dos direitos iguais independe da cor da pele. Somos todos
macacos reatualiza, em uma outra chave de leitura, com a proposta intencional de esvaziar as teses biologicistas do século XVIII e XIX.
Desse
modo, por qual razão, militantes do movimento negro tem reagido negativamente à
essa campanha? Para compreender a essa contra-reação é preciso levar em
consideração um outro aspecto da análise discursiva que ora opera a campanha. Todo discurso marca um lugar no mundo e transmite valores de quem os elabora, pois são determinados por enunciadores ou, melhor dizendo, sujeitos da enunciação. A questão é quem são esses sujeitos discursivos? Como dito acima, a
campanha foi elaborada pelo Sócio e Vice-Presidente da Empresa de Publicidade Loducca Guga Ketzer (conforme o site). Segundo ele, o pedido partiu do pai de Neymar (após o
filho também ter sido alvo de racismo) que o telefonou e pediu para criar alguma coisa como resposta às ofensas.
Após algumas horas do episódio contra Daniel Alves, Neymar postou uma foto
segurando em uma mão uma banana e na outra apoiando seu filho. Rapidamente, a
campanha teve adesão de diversas "celebridades", entre elas o Senador
Eduardo Suplicy, o Primeiro-Ministro da Itália Matteo Renzi, As cantoras Ivete
Sangalo e Cláudia Leite, os cantores Dinho Ouro Preto e Michel Teló, os globais
Luciano Hulk e Angélica e - pasmem - até o escrevente da gossip magazine
"Veja", Reinaldo Azevedo, e entre eles muitos jogadores.
Com
esse grupo de "celebridades" como enunciadores dessa campanha, tendo
a frente uma empresa de publicidade, a hashtag diferencia-se e muito de atos
como a teoria queer e a marcha das vadias. Primeiro, porque não nasce de quem de
fato sofre cotidianamente na pele (e não apenas em jogos com torcedores
revoltados) o racismo moderno. Não se trata de mérito, mas de limites. Se quem sofre a opressão cotidiana do racismo, não for sujeito da luta, não serão alcançados por esta mesma. Logo, se a campanha pretende a igualdade, esta igualdade tem limite: a conta bancária desses jogadores vítimas de racismo, os quais, por fazerem parte do mundo das celebridades, devem ser respeitados como iguais. A igualdade seletiva se evidencia na campanha, como bem tem denunciado o movimento negro, à medida em que em situações racistas piores que essa, não há uma manifestação de indignação por parte da maioria dessas ditas "celebridades". Isto não é contextual, mas do próprio texto da hashtag e chama-se em Linguística ENUNCIAÇÃO. Segundo, porque coloca em contradição com
posturas conservadoras em outras situações que, embora sejam a mesma variante,
não os atingem diretamente. Exemplo foi o caso de Hulk, quando assaltado no
Jardins em 2007, no desabafo que fez em um artigo publicado na Folha (conforme o site), a sua
elaboração teórica da situação foi relacionar o assalto à falta de policiamento.
Isso para não levar em consideração o fato de trabalhar em uma empresa
conservadora como a Rede Globo e produzir sensacionalismo global com a miséria
alheia a qual o mesmo considera ser ato de caridade. Ora, a mesma polícia ou a
mesma lógica de segurança reivindicada por esse time de celebridades é a que
mata negros e negras na periferia das grandes cidades. Certamente, essa equipe
toda incomoda-se bem mais com uma banana jogada no campo do que balas
distribuídas à revelia por uma polícia assassina que dizima a vida de negros e
negras nos morros do Rio de Janeiro. A indignação de Luciano Hulk é seletiva e
tem preço: seletiva, pois só se manifesta quando os interessa e o preço (que
talvez para eles seja uma bagatela) é de 69 reais o preço da camiseta para a campanha (conforme o site), praticamente dez por cento
do salário que recebe a maioria de negros e negras no Brasil e que trabalham
bem mais e contribuem bem mais para o país do que esses pretensos indignados
seletivos.
Para
concluir, não tem como deixar passar duas contradições flagrantes: a primeira é
a de Neymar como pivô da campanha. Em uma entrevista para o Estadão (conforme o site), Neymar
afirmou nunca ter sido vítima de racismo, porque não se considera preto. Como
bem observou Douglas Belchior, o racismo do qual foram vítimas Neymar e Daniel,
lembram que o dinheiro jamais os tornarão branco, sobretudo para uma elite europeia
herdeira da cultura ariana. Contudo, síndrome da ânsia de celebridade, esses
jogadores que, em sua maioria, vem de uma história familiar de exclusão racial
e social, apagam seu passado por meio do esquecimento consumista do qual se
tornam vítimas. A outra contradição é ver participando da campanha o escrevente
(para os curiosos sobre o termo, Roland Barthes dá uma boa definição em
"Crítica e Verdade") Reinaldo Azevedo: eu poderia, mas, sinceramente, acho
redundante tecer qualquer comentário.
Para esse time de "celebridades" e todas
as pessoas que aderiram a campanha, o melhor e mais honesto seria o seguinte
hashtag: #somostodosracistas.
[1] A Marcha das Vadias é um movimento que surgiu a partir de um protesto
realizado no dia 3 de
abril de 2011 em Toronto,
no Canadá, e desde então
se internacionalizou, sendo realizado em diversas partes do mundo. A Marcha das Vadias protesta contra a
crença de que as mulheres que são vítimas de estupro teriam provocado a violência por seu
comportamento. Por isso, marcham contra o machismo, contando sobre os seus
proprios casos de estupro.
[2] Queer é um termo utilizado tanto
na Inglaterra como forma de xingamento contra a população LGBT. A traduação
literal do termo é estranhos, esquisitos
e equivale no Brasil termos como bicha, baitola, frango, boiola e derivados. A
teoria queer teve origem nos Estados Unidos em meados da década de 1980
colocando em questionamento a naturalização dos corpos que normatizam o ser
homem e ser mulher, aprofundando as teorias feministas para romper com a
essencialidade de gênero.
As vezes temo parecer insensível à algumas "indignações coletivas", mas o que me espanta é isso que você apontou em seu texto :a seletividade de tantas indignações que vemos. Diariamente, há muito, MUITO com o que nos indignar, mas nada disso é alardeado.
ResponderExcluir