
"Aquiles chorou, lembrando o querido companheiro, sem que o sono, que a tudo rende, pudesse vencê-lo: girando aqui e ali (...) Olhando para trás, explodiu em lágrimas (...) e, finalmente, levantou-se e caminhou inquieto na beira-mar, (...), então pegou os cavalos e o carro leve, amarrando neles o corpo de Heitor, arrastou-o cerca de três vezes em volta do túmulo do falecido Patroclo; logo em seguida voltou-se para a tenda e deixou o cadáver deitado com o rosto na areia" Ilíada, Livro XXIV, Capítulos 1-22.
Heitor tem nas mãos os sangue do amigo e amante de Aquiles: Patroclo. Este, envergando a armadura do seu amigo e amado, vai à guerra contra os troianos e é ferido de morte por Heitor. Aquiles, após os rituais fúnebres, exige a vingança. Sob as muralhas intransponíveis da orgulhosa Tróia, dá-se a batalha, cuja narrativa homérica faz dela o ápice e uma das cenas mais clássica da literatura universal. Aquiles, semideus cortador de gargantas, filho da deusa Tétis e do rei Peleu, era conhecido pela sua indomável capacidade de guerreiro de destruir seus inimigos com um só golpe. Heitor, príncipe e herdeiro do trono, simples mortal, também gozava de profundo respeito pelos seus inimigos por ser um grande lutador. Ambos se enfrentam. Após uma árdua batalha, Heitor cai sob a espada de Aquiles. Não contente em matar o assassino de seu amante, ele ata o corpo de seu inimigo em seu carro e dá três voltas em redor do túmulo de Patroclo para desgosto do generoso rei Príamo, pai de Heitor. Não bastasse matar seu inimigo, o desejo de vingança de Áquiles exige que o corpo seja ultrajado, violado em sua morte. Nada mais ofensivo para os gregos do tempo de Homero do que a violação do corpo de um morto.
No dia 16 de março (este último domingo), o corpo da auxiliar de serviços gerais Claudia Ferreira foi arrastado por no mínimo duzentos e cinquenta metros segundo informou o site G1[1]. Comparando com a cena ficcional de Homero, o trajeto feito pelo carro de Aquiles com o corpo de Heitor é infinitamente menor que o carro da PM do Rio de Janeiro arrastando o corpo de Cláudia, mas suficientemente para indignar o Deus Apolo que qualificou como cena cruel. Segundo a Polícia Militar, Claudia fora vítima de uma bala perdida, advinda de conflito entre PM e traficantes, no Morro da Congonha, em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro. Segundo a versão dos moradores, não aconteceu nenhum confronto: Cláudia é quem foi abordada pela PM e presa como suspeita de envolvimento no tráfico[2]. Diante de duas versões opostas, há o fato inquestionável de que no carro, Cláudia estava no lugar em que a PM costuma colocar quem é preso (o porta-malas) e não quem é socorrido por bala perdida (banco traseiro).
Claudia, de
38 anos, mãe de quatro filhos, casada há 20 anos, não ia comandar nenhuma
guerra como Heitor, mas comprar pão. Não era herdeira de trono, mas apenas
auxiliar de serviços gerais no Hospital Carlos Chagas em Marechal Hermes.
Mulher negra, moradora do morro de Congonhas que, independente de qual for a
versão, parece ser vítima do racismo. Se presa suspeita de envolvimento com
tráfico, a PM deveria explicar como morreu: se por bala ou se por uma suposta
incompetência policial que não fechou o porta-malas direito. Se vítima de
conflito entre PM e traficantes, qual a razão de seu corpo ser colocado no
Porta-Malas do Camburão? Diferentemente de Heitor, Claudia não tinha as mãos
sujas de sangue de qualquer PM ou amante para que sua morte seja clamada pela
vingança. Na cultura racista brasileira, ela tinha o pigmento no corpo de
negros e negras trazidas para o Brasil Colônia como escravos e que desde Zumbi
dos Palmares (ou antes?) tem lutado pela dignidade humana da população negra. É
certo que para o pigmento europeu isso sempre foi ultrajante e motivo para se
clamar vingança.
Mas não há
Aquiles nessa batalha vergonhosa travada nos morros do Rio de Janeiro. Não há
Aquiles nas práticas cotidianas do racismo no Brasil. Em lugar de Aquiles, há
racistas e covardes personificados cotidianamente na Polícia Militar do Rio de
Janeiro e de todas as outras PM de outros Estados brasileiros. As histórias de violência e covardia
da PM no Brasil são conhecidas nossas: violentas, pois, como mão forte do
Estado, age impiedosamente contra pobres, negros, negras, travestis, mulheres,
juventude; e covardes, porque, como força da lei, agem ilegalmente e,
posteriormente, adulteram o cenário para legitimar sua ilegalidade.
Aquiles
respeitou os ritos: primeiro, fez os ritos funerais de seu amante Patroclo, os quais pressupunham
sacrifícios de cavalos, cães e doze troianos cativos antes de colocar o corpo
do amante na pira Crematória. Após, deveria organizar uma competição de atletismo que
incluía corrida de cavalo, pugilismo, corrida a pé, lançamento de disco,
concurso de arco e lançamento de dardo. Feitos os ritos fúnebres, segue para o
portão de Tróia e desafia Heitor a uma batalha. Somente no final, desrespeita a
tradição grega e desonra o príncipe tomado por seu insaciável desejo de vingança: desrespeito que causará a sua desonra e a ira dos deuses.
A crueldade de Aquiles está no rompimento com uma parte dos ritos. O que
Homero, censurador deste ato de Aquiles, diria, então, da Polícia Militar do Rio de
Janeiro? A Crueldade desta PM se manifesta pelo não respeito aos ritos (ou
leis). O que aconteceu com Claudia, Amarildo e muitos outros nos mostra que a
Polícia Militar age como o poder tirânico, o qual jamais se submete a qualquer
lei ou rito, pois se sente acima deles.
Aquiles, sabendo e aceitando as consequências, assume sua crueldade diante dos deuses, dos gregos, dos troianos, e
principalmente do rei Priamo, o qual vai até o semideus, beija a sua mão e pede
clemência para que Aquiles devolva o corpo de seu filho. Momento em que a
poesia homérica constrói uma das imagens mais lindas ao dizer: "Não visto, passa
o corajoso velho/ Até que, ajoelhado, humilde beija/ a mão terrível que imolou
seu filho".
Na Crueldade da PM não há poesia alguma, mas apenas a pura e vergonhosa covardia, pois, fará dos ritos não o contrato pelo qual se movimentarão, mas apenas o instrumento que justifique a sua crueldade. Se Aquiles assume, a PM esconde e, nesse ato, ela se torna mais perversa. Junta-se a ela o Estado para quem serve de braço forte, bem como a grande mídia a dar voz às justificativas da Instituição e lançar ao silêncio e, portanto, ao esquecimento, outras vozes dissonantes. Estado, PM e Grande Mídia tornam-se o carrasco cruel e covarde que arrasta o corpo de Claudia na avenida.
Na Crueldade da PM não há poesia alguma, mas apenas a pura e vergonhosa covardia, pois, fará dos ritos não o contrato pelo qual se movimentarão, mas apenas o instrumento que justifique a sua crueldade. Se Aquiles assume, a PM esconde e, nesse ato, ela se torna mais perversa. Junta-se a ela o Estado para quem serve de braço forte, bem como a grande mídia a dar voz às justificativas da Instituição e lançar ao silêncio e, portanto, ao esquecimento, outras vozes dissonantes. Estado, PM e Grande Mídia tornam-se o carrasco cruel e covarde que arrasta o corpo de Claudia na avenida.
Deprimente a cena, especialmente, para nós Mulheres negras de periferia, nada mudou desde a abolição até agora....
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