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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

QUAL O VALOR DE UMA CASA?

Só entende o valor de uma casa quem já morou em barro pisado na esperança de um piso, simples que fosse, mas digno. Quem todo dia a ver o sol nascer ou a chuva a correr pelos blocos de alvenaria, sabe o desejo de uma massa corrida, a pintura de uma mão só, mas que guardasse a intimidade. A alegria de pagar uma conta de luz só sabe ter quem precisou montar “gato” pra não jantar no escuro. Um teto de laje descente para quem já teve de colocar panelas amassadas ou baldes sem alça a impedir que a água de chuva enlameasse o chão de barro. Só sabe o valor de uma casa  quem sempre temeu perdê-la. A casa – o lugar do presente para lembrar o passado e olhar para o futuro – é o lugar para aquele que mesmo a rodar o mundo sabe para onde voltar. É o lugar do bate-boca, da gritaiada, das brigas fraternais, mas também o lugar do afeto, do apoio, o lugar do pai, da mãe, dos irmãos, da intimidade.

            Não há educação sem casa: depois de aulas cansativas ou talvez interessantes, depois da merenda, de rever colegas, das conversadeiras, das brincadeiras de rua pós-aula é para a casa que se volta, lavar as sujeiras, alimentar o corpo e descansar a alma. O menino sentado na sala vê seus colegas saírem, mas não se move. A professora da porta pergunta, menino, não vai pra casa? Não tenho casa professora, a polícia me expulsou de lá hoje de manhã. Um cenário inverossímil, pois jamais poderá ter escola quem não tiver uma casa.
Não há fé sem casa: depois da reza, da penitência, da comunhão é pra casa que sempre se volta. O padre ou pastor lê o evangelho, se estiveres triste, entre em tua casa, feches a porta e sozinha fale com Deus que na intimidade de teu lar atenderá tua prece. Há tristeza, muita tristeza que um coração só não dá conta, mas não há casa.  O mundo pode ser grande, cheio de mistérios e de aventuras, mas o mundo só é mundo, pra quem, depois do tédio, das desilusões, das alegrias, tem uma casa para voltar. Mesmo que seja o lugar de atrito, do marido zangado, da esposa irritada, do pai furioso, mas sempre será a casa que mais cedo ou mais tarde irá voltar.
            A menina que pegou bucho, que beijou a colega ou furtou o armazém, uma vez expulsa de casa, entende o que é perder. Se não se perde na vida, largada na rua, afundada nas drogas, só poderia recomeçar, se primeiro puder construir para si uma casa. Não há recomeço possível se não houver casa. Mesmo que alugada, invadida ou cedida, se puder passar a chave e fechar-se para o tumulto da vida, poderá fazer da noite ou do dia um novo momento. À noite, talvez triste ou lacrimosa, talvez alegre ou esperançosa, seja o que for, o sono, o descanso, o raiar do dia trará um novo começo.
            Não se come bem na rua. Mesmo que em restaurantes de estrelas ou barraquinhas de cachorro quente. Só a comida caseira preparada pelo pai ou mãe, pela irmã ou marido, pelo filho ou esposa, poderá deixar o corpo satisfeito. O partir do pão, o sentar a mesa, o brigar pelo maior pedaço de carne, o rapar a panela de arroz, a pipoca estourada antes do filme, a cerveja entre amigos, o chá da tarde, o cafezinho bem brasileiro ou a boa feijoada só existem por haver casa. Mesmo quando falte o ovo frito no arroz, ou a manteiga no pão, se houver casa, haverá esperança. Muitas vezes, a esperança é o pão do pobre. Ainda que falte o leite ou o gás, que o pão seja menor que a fome, que o cobertor não dê conta do frio, que não haja mesa para o jantar, haverá esperança de dias melhores.
            É na casa que se nasce, não no hospital. É na casa que aprende a balbuciar as primeiras palavras. É na casa que se tem a última pessoa a ajudar. É na casa que se chora, se conta piada, se faz brincadeira. É na casa os primeiros prazeres do sexo. E mesmo que haja tantos bordéis ou baladas, tantos amantes ou namorados, tantos gemidos de prazer, somente na casa que se pode ter as melhores transas. O aqui, o agora, o presente são outros sinônimos de casa. Mesmo que roubem a carteira, o tênis de marca pago em longas prestações, por mais triste que seja, são efemeridades que a esperança pode fazer voltar. Mas tirar de alguém uma casa é matar a esperança, é destruir uma história, é atentar contra a vida. A vida não é apenas o ato de respirar. Mais que isso, é o ato de sonhar e só há sonho onde houver casa.
Aqueles que já nasceram com azulejos nas paredes, pisos de primeira qualidade, tetos altos, refinados e lustrados, têm dificuldade de entender o valor de uma casa. E se não a entendem, dificilmente saberão o que é esperança, o que é história, o que é sentir a perda. Facilmente se tornarão demolidores de esperanças, pois podem derrubar e erguer quantas paredes quiserem. Não saberão o valor das coisas mínimas. Sequer saberão fechar a porta atrás de si para falar com Deus, pois tudo tem de ser agendado e calculadamente cronometrado com a ânsia de dominarem o mundo, pois suas almas não cabem dentro de uma casa. Estes – criados para o acúmulo e para a especulação – serão o pesadelo dos que ainda podem ter esperança. Espreitarão com choques e borrachas – armas hipocritamente não letais – o sono esperançoso de quem dorme. Reclamarão direitos e o Estado lhes estenderá os braços em socorro. Escoltados pelo poder, pisarão nas pequenas esperanças para erguerem torres de babel com a ganância de pegarem o sol com as mãos. Esses que privatizam o amanhã poderão morar em mansões, em apartamento duplex com vista para o mar, em condomínios fechados ou possuírem sozinhos uma ilha, mas serão sempre fundidos na frieza do ferro e do concreto, porque nunca puderam descobrir o valor de uma casa.

2 comentários:

  1. Refletindo... Eu tinha e não dava valor, então saí ao me sentir "livre", mas maioridade não significa independência. E quando mais precisei foi pra casa que voltei.

    Belíssimo texto. Compartilhado! Bjs

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  2. Que texto, Dario! Um dos mais belos... estou emocionado... teu texto urge, principalmente perante o que estamos vivendo, tanta dor e necas de solidariedade ou de humanidade... não sei mais para onde iremos, me sinto sem casa...
    Beijos,
    Ricardo Aguieiras
    aguieiras2002@yahoo.com.br

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