"O silêncio diante da violência promove o cárcere aos inocentes."
Ricardo Davis Duarte
Há um tempo, tenho lidado com um
problema familiar, no qual minha irmã, mãe de quatro crianças, tem apresentado
um quadro de total descaso à violência física e psicológica que meus sobrinhos sofrem
com seu padrasto. Diante dessa situação, minha mãe procurou o Conselho Tutelar
de Guaianases e a informação recebida pela Conselheira era de que só poderiam
tomar alguma atitude se fosse feito uma denúncia anônima. Sem saber refutá-la,
minha mãe voltou para casa profundamente irritada e com sensação de impotência,
uma vez que minha irmã tem a guarda das crianças. Sendo uma mulher bastante
religiosa, sua única alternativa foi entregar nas mãos de Deus e esperar Sua
providência para essa situação concreta. Semana passada, não podendo mais
aguentar a situação de violência, meu sobrinho mais velho resolveu, juntamente
com sua irmã, fugir para a casa de sua avó materna, minha mãe. Como eu estava
em casa dela, apenas tomei café com meus sobrinhos e descemos para a delegacia
registrar boletim de ocorrência, não antes de falar com um amigo e militante do
PSOL que trabalha com os direitos das crianças e adolescentes.
Orientado por ele, fui à delegacia que por sua vez me encaminharam ao Conselho Tutelar. Ao ser atendido pelo conselheiro, a mesma situação se repetiu: orientou-me a ligar para o disque 100, que eles encaminhariam para os órgãos competentes, inclusive para aquele Conselho. Indignado com a burocracia e o descaso diante da situação, tive de me empenhar em um exercício retórico para não sair de lá sem nada. As argumentações e justificativas do conselheiro eram de irritar o mais paciente dos seres humanos e, em alguns momentos, a sensação de impotência também me abateu. Nada do que eu dizia adiantava: eu citava o ECA, ele dizia os limites da ação de um conselheiro; eu citava pessoas e órgãos que eu conhecia e que diziam o contrário, ele desqualificava-as, dizendo que essas não conheciam a realidade de um conselho. Irritado com a pusilanimidade do conselheiro, questionei-o se aquela era a orientação padrão que eles davam a todos que procuravam o serviço, o que ele me confirmou. Então questionei qual a relevância de um Conselho Tutelar se sua única função era indicar o disque 100. Somente depois desse “braço de ferro” que impus a ele foi que o conselheiro resolveu ouvir os meus sobrinhos – que queriam denunciar a mãe –, deu-nos uma autorização de guarda provisória e nos orientou os passos seguintes para das os encaminhamentos devidos em defesa das crianças.
Orientado por ele, fui à delegacia que por sua vez me encaminharam ao Conselho Tutelar. Ao ser atendido pelo conselheiro, a mesma situação se repetiu: orientou-me a ligar para o disque 100, que eles encaminhariam para os órgãos competentes, inclusive para aquele Conselho. Indignado com a burocracia e o descaso diante da situação, tive de me empenhar em um exercício retórico para não sair de lá sem nada. As argumentações e justificativas do conselheiro eram de irritar o mais paciente dos seres humanos e, em alguns momentos, a sensação de impotência também me abateu. Nada do que eu dizia adiantava: eu citava o ECA, ele dizia os limites da ação de um conselheiro; eu citava pessoas e órgãos que eu conhecia e que diziam o contrário, ele desqualificava-as, dizendo que essas não conheciam a realidade de um conselho. Irritado com a pusilanimidade do conselheiro, questionei-o se aquela era a orientação padrão que eles davam a todos que procuravam o serviço, o que ele me confirmou. Então questionei qual a relevância de um Conselho Tutelar se sua única função era indicar o disque 100. Somente depois desse “braço de ferro” que impus a ele foi que o conselheiro resolveu ouvir os meus sobrinhos – que queriam denunciar a mãe –, deu-nos uma autorização de guarda provisória e nos orientou os passos seguintes para das os encaminhamentos devidos em defesa das crianças.
Apesar do relato extenso, não se trata
de um desabafo, mas de uma reflexão a partir dessa experiência que vivenciei.
Talvez não seja novidade do quanto o serviço público seja precário de um modo
geral, mas principalmente na periferia. Infelizmente é muito comum a população
não ser atendida adequadamente quando busca uma consulta médica no Posto de
Saúde ou Hospital, quando vai à escola ou creche a procura de vaga e muitos
outros serviços públicos. O que me espanta nessa situação que relatei é o fato
de que o Conselho Tutelar é um instrumento que, quando o atendimento público
falha, recorre-se a ele para combater a violação de direitos de crianças e
adolescentes. O Conselho é um órgão que goza de autonomia e, portanto, não está
subordinado a qualquer outro órgão do Estado. Seus membros, eleitos pela
comunidade, devem em conjunto fazer um trabalho de fiscalização a todos os
entes de proteção – Estado, comunidade e família – para garantir a não violação
dos direitos da criança e do adolescente. Se alguém recorre a ele, muitas vezes
por desconhecer seus direitos e ou não ter recursos materiais para garantir
seus direitos, e este torna-se negligente, o único sentimento da vítima é a de
total impotência.
As condições de pobreza, entre as
inúmeras violações, viola o direito à informação. A grande maioria da população
pobre desconhece órgãos, serviços e direitos que lhes são constitucionalmente
garantidos. Logo, acionar qualquer órgão público torna-se uma dificuldade. Essa
experiência que relato coloca outra dificuldade: a violência da burocracia. O
cidadão que recorre a esse serviço dá um passo significativo para a garantia de
seus direitos, mas se depara com uma nova e perversa forma de violação: a
dificuldade de contra-argumentar a pessoas que teoricamente deveriam
auxiliá-las nessa batalha. Uma nova batalha se estabelece entre esse fiscalizador
de direitos e a pessoa: a batalha retórica para que este possa cumprir sua
função. Não é uma batalha fácil mesmo para quem, como eu, esteja acostumado com
a arte da argumentação, imagine para quem não tem costume. Chega a ser
irritante estar diante desse órgão com todos os elementos necessários para que
a fiscalização seja feita e as medidas legais sejam tomadas e vê-lo refutar e
menosprezar um a um de seus argumentos.
Tal situação coloca-me diante de uma
angústia terrível: tento constantemente convencer familiares, amigos e conhecidos
a não se calarem diante da violência, mas, quando eles tomam qualquer atitude,
encontram verdadeiros burocratas a impedirem o exercício de seus direitos. Uma
lógica perversa que vi se construindo na sala diante do conselheiro foi a de me
legitimar pelo meu ethos político e acadêmico como forma de minar sua postura
pusilânime. Primeiro, ao dizer onde morava, ele descobriu ser eu estudante da
USP e ao perguntar o que eu fazia, soube que sou doutorando; segundo, fui
reconhecido por uma das conselheiras, pois em abril deste ano dei uma palestra
aos Conselheiros Tutelares de São Paulo sobre Diversidade Sexual em São Carlos
e terceiro, tinha condições discursivas necessárias para refutar sua má vontade
em atender as crianças. Mas fiquei pensando: quantos moradores de Guaianases tem
a felicidade de minha mãe em ter um de seus filhos que além de universitário é
militante político e conhece pessoas, tem contatos com o serviço público. Minha
vontade foi a de fazer plantão naquele conselho para fiscalizar o serviço
desses que se negam a fiscalização. Cada refutação, cada emperramento
burocrático criado por um Conselho Tutelar ou por qualquer órgão público é mais
uma criança violentada, abusada sexualmente e muitas vezes morta por que esses
conselheiros não fizeram o que é devido às suas atribuições. Tenho ouvido
muitos discursos elitistas dizendo que o povo é burro, não sabe votar, tem o
governo que merece entre outros absurdos. Mas como se identificar com essa
estrutura política se a burocratização reina absurdamente, se a apatia política
é cultivada e incentivada por esses que deveriam garantir o cumprimento da lei?
Por fim, quando entrei na USP e ao ouvir
tantos intelectuais, sociólogos de esquerda e militantes dizerem sobre a
população da periferia, eu não me identificava com aquele conceito de “povo
pobre” construído nesse imaginário discursivo. Hoje, percebo de modo mais
acurado o quanto o discurso de esquerda, acadêmico e político forja um falso
conceito de pobreza, operando dois extremos: ou um povo trabalhador que um dia
tomará de assalto o poder ou um povo burro que tem o governo que merece. Não!
Definitivamente, minha família, meus amigos, meus vizinhos, não se encaixam em
nenhum desses extremos. São pessoas que, mesmo não tendo informações
suficientes para garantir seus direitos, tentam, mas encontram constantemente
pessoas preparadas para os silenciarem e deixarem neles um único sentimento: o
sentimento de impotência.
Se a esquerda não compreender e disputar o espaço do Conselho Tutelar, cada vez mais os direitos ao invés de garantidos , serão violados!
ResponderExcluirSem dúvida Giva... é preciso olhar para essa questão com maior atenção e cuidado para que principalmente a população mais pobre possam saber que terão com quem contar caso seus direitos sejam violados... novamente agradeço pelo seu apoio, compromisso e militância em defesa dos direitos da criança e do adolescente...
Excluirmeu caro, acho que o conselho tutelar em questão está completamente equivocado com a sua função e objetivos, isso é um completo absurdo, o CT está para proteção da criança e do adolescente, portanto os primeiros a serem ouvidos e amparados. O fato de precisar de outro tipo de denúncia isso é incompetência deste CT em seguir a lei.
ResponderExcluirEm primeiro lugar, parabéns. Não desistir diante da força surda da burocracia é digno de cumprimentos.
ResponderExcluirEm segundo, não sei se compartilho da opinião exposta no primeiro comentário, relativa à esquerda disputar os espaços...não sei se somente isso auxiliaria na mudança social que o Brasil precisa. As relações interpessoais dentro dos setores públicos estão doentes, é desanimador, desesperador...acho que minha opinião se encontra em um ponto que no fundo acredita ser tarde demais pra mudar consciências e cedo demais pra desistir. Pode-se trocar o problema de lugar, mas ele não desaparece, apenas vai pra outra esfera...
Obrigada por compartilhar sua experiência nesse blog. Eu achei por acaso enquanto "passeava" na internet e me foi muito válido e reflexivo ler isso. Abraços.